1. O que é que vieste aqui fazer?
No meu Diário, falo várias vezes desta questão. Faço-o em dois sentidos muito diferentes. Em primeiro lugar, há o que poderíamos chamar o sentido de obrigação profissional ou de trabalho.
Cheguei a Braga em janeiro de 2022 graças a uma bolsa de investigação que tinha recebido, dado o meu estatuto de professor universitário em Espanha. Tratava-se de uma bolsa de doze meses, dividida em dois períodos de seis meses cada, a realizar entre janeiro e junho de 2022 e 2023. Não conhecia a cidade de todo. Podia ter escolhido qualquer destino na Europa. Se escolhi Braga, foi basicamente porque a minha universidade de acolhimento estava a trabalhar nas mesmas linhas de investigação em que eu trabalho há muitos anos. E, em segundo lugar, porque a proximidade de Espanha me permitiria tornar mais suportável este período fora da minha casa habitual.
Para além deste sentido de obrigação profissional, existe um outro, bem diferente, que marcou os meses que passei em Braga. Poderia chamar-lhe um segundo sentido de vocação. Desde os primeiros momentos que me perguntei o que é que eu era chamado a viver durante aquele tempo em Braga, qual era o chamamento que Deus me fazia, no aqui e agora vivido naquela cidade, num momento tão crucial da minha vida.
Nos anos imediatamente anteriores à minha chegada a Braga, a minha vida tinha entrado numa encruzilhada, num daqueles momentos decisivos que a todos, mais ou menos, nos tocam em ocasiões especiais. Desde 2020, tinham-me sucedido alguns acontecimentos importantes e algo traumáticos, e eu precisava de colocar algum espaço pelo meio e fazer um trabalho interior para os processar, incorporar e ler com os olhos de Deus, a fim ver o que Ele me queria dizer.
É por isso que no livro falo do que tenho de fazer por obrigação e também, noutro sentido, do que tenho de fazer por vocação. Falo do trabalho e das preocupações que ocupam o meu tempo, a minha mente e o meu coração, e das perguntas e propostas que surgem na minha vida como apelos de Deus. Neste sentido, acredito que esta tensão é a que todos os adultos experimentamos, com as nuances das circunstâncias que nos rodeiam a cada um de nós. E, por isso, acredito que o meu livro pode conectar com aqueles que sentem que, nas suas vidas, é importante deixar tempo e espaço para que “o que têm de fazer” como vocação surja cada vez mais forte.
2. Qual foi a motivação para escreveres O Meu Diário no Carmo do Fradinho?
Bem, nesta entrevista, realizada no final de 2024, olho agora para trás e, após o percurso de todos estes meses passados em Braga, vejo como aquelas questões de fundo que tinha quando cheguei à cidade, em 2022, foram ganhando forma. Mas, no início, apenas existiam intuições, algumas delas nem sequer conscientes, do que eu queria ou precisava de viver. Por isso, o caminho que percorri, de que falo no livro, não foi isento de dúvidas, de tentativas e erros e de situações dolorosas.
Para além da situação traumática que tinha trazido comigo, fruto dos problemas de trabalho e de saúde que tinham entrado na minha vida, houve as dificuldades com que me deparei quando cheguei a Braga. Dificuldades laborais, mais uma vez, porque na minha universidade de destino não tive o acolhimento necessário para desenvolver o meu trabalho. E também dificuldades logísticas, porque cheguei a um sítio onde havia sérias dificuldades em encontrar alojamento a um preço razoável, fruto da especulação imobiliária e dos processos de turistificação. Um problema que não tinha imaginado antes de vir, pois Braga é uma cidade mais pequena do que outras como Porto ou Lisboa, onde estes fenómenos são vividos com uma intensidade semelhante à de outras grandes cidades espanholas como Madrid ou Barcelona.
Não me vou alongar sobre este percurso inicial – que está resumido na introdução do primeiro volume do meu diário –. Mas na minha procura de um lugar para viver, com preços razoáveis e com condições para fazer a “viagem interior” de que necessitava, recebi algumas recusas, porém, felizmente, o meu pedido foi ouvido no convento dos Padres Carmelitas Descalços de Braga. Abriram-me espaço no albergue onde se alojam os estudantes que chegam dos países lusófonos.
Desde os primeiros momentos, o prior da comunidade falou-me de Frei João d’Ascensão, um carmelita do século XIX cuja figura exemplar estava a ser recuperada. A sua estátua tinha sido colocada à entrada da igreja alguns meses antes da minha chegada, pelo que, nas minhas idas e vindas quotidianas, me deparei e interroguei sobre esta figura (em todos os sentidos da palavra), magnética e enigmática ao mesmo tempo.
Foi nesses primeiros tempos que a ideia de escrever o livro, me atravessou como um relâmpago. Apercebi-me de que me encontrava em circunstâncias semelhantes às vividas por um dos mais influentes autores sobre crescimento pessoal e espiritual, Henri Nouwen (1932-1996), quando escreveu um dos seus bestsellers: My Diary at Genesee Abbey. É um dos livros mais autênticos que já li, no qual Nouwen relata a sua vida durante os meses que passou na abadia cisterciense, nos EUA, que dá nome ao livro.
O Meu Diário na Abadia de Genesee já o tinha lido e relido inúmeras vezes ao longo dos últimos vinte anos. E pensei muitas vezes que gostaria de me encontrar em circunstâncias que me permitissem escrever algo semelhante a este livro. Salvando as distâncias, claro, porque estamos a falar de um dos autores mais influentes da espiritualidade cristã do século XX.
Assim, O Meu Diário no Carmo do Fradinho foi algo que não previ, que entrou na minha vida e que me permitiu iniciar o processo de cura de que necessitava, ao mesmo tempo que ia conhecendo Frei João d’Ascensão, que ia lendo o que sobre ele se haviaa publicado nos últimos tempos e participando nas actividades organizadas para o dar a conhecer.
3. Será que Deus conhece as armadilhas que os inimigos nos preparam?
Não posso responder a esta pergunta como teólogo, porque não sou teólogo. Mas posso tentar responder-lhe como pessoa e como crente. Com a minha idade (nasci em 1970), já tenho uma certa experiência dos inimigos que encontrei ao longo da minha vida e do mal que o ser humano é capaz de pôr em ação. Mais concretamente, tive a oportunidade de sofrer na minha carne a ação de adversários e inimigos que, na minha universidade espanhola, me atacaram ao ponto de gerar a situação que me levou a entrar em crise e a ter de vir a Braga para procurar uma resposta adequada.
Acredito que Deus nos conhece profundamente cada um de nós. Ele sabe de que é que somos feitos, o positivo e o negativo que habita no nosso coração. E, para responder à pergunta, creio também que Deus conhece as armadilhas que os nossos inimigos nos preparam.
Basta ler a Bíblia para nos apercebermos disso. Basta, por exemplo, recorrer ao livro de Job, onde vemos, paradigmaticamente, uma experiência semelhante àquela por que passaram, injustamente, outros homens justos e profetas de que fala o texto sagrado. Há alguns meses, faleceu o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, que escreveu um livro maravilhoso sobre Job, Falar de Deus a Partir do Sofrimento dos Inocentes (1986), um texto que li na minha juventude e que me marcou profundamente.
Depois de ler livros como Job – ou vários dos Salmos –, é impressionante a pouca evolução do coração humano nos últimos vinte e cinco ou trinta séculos! O desenvolvimento científico e técnico do nosso tempo contrasta com o subdesenvolvimento ético, espiritual e moral de muitos dos nossos contemporâneos.
O mal é retratado de forma perfeita e marcante nestes textos. E, sobretudo, na Paixão de Jesus, o Cristo, onde o Filho de Deus culminou este processo em que os inocentes são atacados e, finalmente, executados pelos inimigos do bem, da justiça ou, para usar uma terminologia cristã, por aqueles que se opõem à vinda do reino de Deus.
e… 4. Por fim, quem é para ti o Fradinho?
Não é fácil para mim dar uma resposta fechada ou definitiva a esta pergunta. Há muitas fotografias do Fradinho: de diferentes perspectivas, em diferentes alturas do ano, com a luz do sol em diferentes posições e com uma grande variedade de cores. A minha experiência do Fradinho é igualmente dinâmica e provisória.
Para começar, surpreende-me que alguém como Fradinho, que viveu numa época aparentemente tão diferente da que vivemos hoje, esteja agora a ser resgatado! Assim como me surpreende a ligação pessoal que tenho com alguém, como ele, de um lugar e de uma época tão diferentes em tantos aspectos da minha. Resta-me tentar situar tudo isto em termos da ação misteriosa de Deus na história e na vida das pessoas.
Dito isto, não quero fugir à questão sem dar pelo menos algumas respostas provisórias. Aliás, esta pergunta é uma constante no livro, à qual respondo, de forma indireta, através da frequente referência que faço ao Fradinho para pensar como ele viveria alguns dos acontecimentos ou situações que eu tenho de viver.
Neste momento, destacaria dois elementos da sua figura que, particularmente, me prendem a atenção. Um é a sua busca de transcendência num contexto sócio-cultural que, na sua maioria, se orientava no sentido oposto. Vivemos hoje algo de semelhante, com outras nuances, nas sociedades europeias. Uma mística francesa da segunda metade do século XX, Madeleine Delbrêl, disse, por volta dos anos 50, que chegaria o dia em que o nome de Deus causaria indiferença.
Posso imaginar o espanto daqueles que, do catolicismo nacional que prevalecia em Espanha naquela altura, ouviam esta afirmação. Soar-lhes-ia a algo de extraterrestre. Hoje, quando a onda de secularização e de descrença chegou a Espanha com tanta ou mais força do que a que abalou outros países europeus nas décadas anteriores, a indiferença pelo nome de Deus é, para muitos, uma realidade.
Neste contexto, penso que a figura de Fradinho é uma luz no meio da noite para aqueles que procuram a transcendência, num clima marcado pela banalidade e pela indiferença. É alguém que, quando se aproximava o fim da religião e da sua presença na vida pública, teve gestos profundamente cristãos. Levantou-se e pôs-se a caminho, juntamente com outros, com a palavra de Deus no coração e com a mão estendida num gesto de solidariedade e de amor fraterno. Creio que em tudo isto há uma profunda mística que pode ser útil para aqueles de nós que, hoje, atravessamos as suas noites escuras pessoais, comunitárias e sociais.
O outro elemento que eu gostaria de resgatar da figura de Fradinho está relacionado a um sinal dos tempos de nossa época. Nem tudo é negativo na atual situação sócio-cultural. Desde há algum tempo, temos vindo a assistir a um renascimento da procura do silêncio e da contemplação. Há cada vez mais grupos e indivíduos de diferentes tradições espirituais a querer fugir do ruído, no sentido polissémico da palavra, para abrir espaços de silêncio, de contemplação e, em alguns casos, de oração nas suas vidas.
Refiro-me a uma recuperação, com outros matizes, de uma corrente mística que assumiu diversas formas ao longo do século XX e no início do século XXI, e que nos convida a ser místicos na cidade, contemplativos em ação, no meio do mundo. O testemunho de Charles de Foucauld é um exemplo paradigmático disso mesmo. A sua canonização pelo Papa Francisco, em maio de 2002, é uma declaração de princípios sobre o tipo de santidade que pode florescer no nosso tempo.