Frei João Costa, OCD
Só lá muito no finzinho, já no fim da véspera de Natal, num cantinho da minha cela, também eu armo o presépio. A mãe está lá. O pai está lá. Ela tem lágrimas e lágrimas ele tem. E serena alegria também; esta orlada de lindas perlas caindo das persianas de seus olhos. O menino, Deus e carne da nossa carne, também está lá. Umas vezes, dormindo, outras, sorrindo. Outras, mamando nos peitos da mãe que, de quando em quando, também lhe lala, o embala e lhe troca as fraldas. Tal é o meu singelo presépio.
Há quem, a cada ano, lhe acrescente uma figura. Eu todos os anos lhas transmudo, não importa se meninos, se reis, se pastores, se judeus ou ateus, estrangeiro ou doutores. Virá quem vier.
Aqui vão, pois, as figuras do meu presépio de 2024:
O anjo visitador
Todo o presépio tem o seu anjo. Eu gosto de anjos, mas sem espada nem vinganças. Há uns cantores, outros trombeteiros, outros com turíbulos fumegantes, com harpas ou com partituras do Gloria in Excelsis Deo. Há uns amparando os passos de meninos a caminho da escola, outros velando-lhes o sono, outros tangendo baixinho violinos e sininhos.
Eu gosto muito de anjos colectores de lágrimas, com paninhos de linho branco nas mãos. Como tanto gosto destes, sim! Mas, depois da Pandemia conheci e aprendi a reconhecer, e a melhor apreciar, os anjos visitadores de sacrários. Há dias conheci um que me infundiu especial ternura. Já a escuras desoras ia eu fechando a igreja, quando, correndo, se me aprochegou um deles. Se eu podia esperar um minutinho que fosse, disse, para que entrando um instantinho na igreja, adorasse. Aí eu pensei que o minutinho solicitado, talvez pudesse durar tanto como o antigo Minuto de Silêncio – esse tão solene e nobre minuto que durava sempre entre os quinze e vinte! Sim, eu pensei isso e dispus-me à demora que, porém, a tanto não chegou, embora demorasse bem mais que o breve minutinho.
À saída, discreto, já semi-fechada, eu guardava a porta; aí, ele adveio e disse-me:
– Muito obrigado, senhor, por ter esperado um minutinho!…
– Ómessa, lhe respondi, mais esperaria, se necessário. – E era verdade.
– É que é tão importante para mim, este minuto do meu dia…
Óbvio que eu imaginara que sim; mas sem mais nada dali pedir ou perceber. E aí, sem mais perguntar, disse-me o anjo:
– O senhor nem imagina! É que eu nem sempre posso ir à Missa. Muitas vezes falto aos domingos, porque a vida se me descompõe. Mas sempre que vou à igreja de Tal Parte, logo depois venho tão longe, à Igreja do Carmo – a única que todos os dias sei aberta até tão tarde – para visitar Jesus que na comunhão antes docemente me visitou, entrando em meu coração, e sem eu merecer! Então, como lhe digo, padre, logo de seguida, faço-Lhe uma visitinha sempre curtinha, mas muito agradecida, de coração a coração, por Ele me ter visitado na comunhão! Muito obrigado pela sua simpatia, portanto!
– Muito obrigado eu pela lição, me repeti baixinho e agradecido, só de mim para mim.
Não importa se apressado, se adorador, se calmo ou agitado, se correndo, se parado; no presépio deste ano vou colocar um Anjo Visitador com palavras mansas e abrasado coração adorador.
Escritores
Para mim, escritores são como palhaços. Tantas vezes, chorando, fazem rir. Tantas vezes rindo e brincando, fazem pensar e chorar. Estes não são comentários depreciativos, são o reconhecimento da versatilidade de tantos homens e mulheres que, semeando carreiras de letras e de sinais pequeninos, interpretam os sentimentos da comunidade, enformam valores, enfrentam malvados lugares comuns e encorajam palavras em falência de sentido. E têm também de escrever sobre Natal, mesmo que, no Dia, não tenham com quem repartir a posta de bacalhau e a batata fria que trouxeram para casa numa cuvete.
Este ano, nas redondezas da manjedoira da Palavra, o meu presépio terá uma velha máquina de escrever. Mesmo que a máquina só escreva banalidades sobre o «ver a iluminação do natal», ainda assim eu irei colocá-la, sim.
Senhora do obrigado
Na realidade é mais que uma senhora, são várias. São todas velhotas, são todas do povo, todas humildes, todas gastas, todas pequeninas. Se as vir na rua não as reconhecerei a todas, na igreja sim, sobretudo quando lhes dou a comunhão:
– O Corpo de Cristo, lhes digo.
– Amen, me retribuem.
E posta a confissão de fé, na mão lhes deponho Deus no Sacramento Alvíssimo que elas elevam à boca, logo comungam e depois se retiram a coxear, a bambolear, a tropeguear.
Há, porém, uma senhora, ou um grupinho delas, mas cada uma em sua vez e em diferentes missas, que antes de comungarem, mas já com o Corpo na mão, ainda me olham e acrescem baixinho:
– Obrigado!
Ou, se mais não me conhecem:
– Obrigado, senhor Padre!
Sim, neste Natal eu vou colocar no presépio um obrigado em forma de sacrário e de senhoras velhinhas, piedosas e baixinhas. Gastas e cansadas.
Um médico
Quando nasceu na gruta de Belém, o menino não teve direito a assistência médica, nem de médico, nem de enfermeira, nem de parteira, nem de mulher curiosa como a minha avó que, só de filhas e noras, parturiou quase quarenta netos.
O médico que no presépio deste Natal, de joelhos, ali vou colocar, não é o médico que na gruta falhou na noite de Natal. Não é esse, não. Vou colocar um que conheço bem, de nome, de vida e de lágrimas. Que vejo muitas vezes ajoelhado, cabeça entre as mãos, e a seu lado, o câncer que, medra, comendo-lhe o corpo. O médico chora muito e reza muito, mas não é só por causa do câncer que tem, ou pela saúde que não tem. É pelos muitos doentes que quando, as horas se apoucam, não lhe permitem mais visitar. E como a tantos não pôde visitar, então ao fim do dia, vem visitar o Senhor na Cruz e apresentar-lhe os que mais uma noite e um dia vão ficar sem a sua visita.
O meu presépio, este ano, tem um médico, de joelhos, a rezar e a chorar.
O cão que lê
Quando algures, ao longo do ano, seja verão, seja inverno, subo a Rua dos Chãos, pelo lado esquerdo, que é onde sempre os vejo, deparo-me com um presépio de um mendigo só e seu velho cão. Pelo porte, o cão é de raça nobre.
Devem passar ali a noite, ao relento, porque sempre os vejo por volta das nove horas, e depois não mais. Há uma só mantinha por perto, o que me leva concluir que dormem juntos e agarradinhos. Se ali não ficam, é sinal que dali se retiram e depois se volvem invisíveis. O homem magro, que nunca vejo a comer, deve ser filósofo, pois sempre lê um livro – ora aí esta uma boa decisão para bem começar o dia, mesmo que o leia de pernas para o ar – acto só ao alcance de filósofos! E talvez seja sempre o mesmo livro, como quem anda buscando o lado escorreito de ler; não vejo nisso, aliás, mal algum.
O cão sempre tem três pias, duas de metal e uma de papel – um livro.
A primeira pia está sempre cheia de biscoitos de cão. A segunda tem água do Luso. Sempre que os vi, também nunca vi o cão comer ou beber, mas deitado em cima de uma manta grossa, de focinho no chão, está postado e afilado para o livro. Porque não é míope, o cão lê. Eu sei que lê, que eu sei distinguir o porte dum cão afeiçoado à leitura de um viralata que o não seja.
O meu presépio de 2024 tem um cão que lê.
Agostinha
Também havia lavradas, mas a minha terra inclinava-se mais para as laboiras. Porque as conheci, fui e sou mais das laboiras; algumas delas rasgando leivas na terra com quatro juntas de bois ou mais! Uma laboira assim tinha de ter home que soubesse de guberno de gentes e alimárias, mesmo tendo em conta que quem chamava as outras juntas não era nunca burro nenhum!
E se no campo, o home comandava o exército das enxadas e charruas, na casa, a mulher comandava o forno, o lume da lareira, as raparigas, os crianços, o exército das arcas, dos potes fumegantes, das pipas, jarros, infusas e pratos, e os pobres que sempre mais apareciam nas alturas de fartura, a rezar pelas almas de quem Bocê lá tem.
Uma laboira, só para que se saiba, era algo quase tão sagrado como uma procissão de cardeais no Vaticano! E, repare-se bem: Vaticano há um só!
Pois, eu lembro-me bem desse tempo solene.
Nas laboiras, ceifas e vindimas, lembro-me da alegria de ver a Agostinha e as filhas chegarem ao ajuntamento do pessoal com açafates à cabeça e abrirem os mantéis e nos matarem a larica. O que nos traziam nem era o mais importante. Antes sim, o modo alegre e abençoado como no-lo repartiam, dos mais velhos para os mais novos – essa era toda a nossa mais que justa recompensa! A mim, que à altura não passava de canalhico, bastava-me receber um pedaço grande de broa com uma rodela de salpicão, um casco de cebola e pimento vermelho curtido em vinagre!
A Gustinha tem agora 94 anos. Pode ser que se aguente, ouço dizer, mas para aquelas bandas o frio sempre teve galões de imprevisto general meio maneta – traiçoeiro, quero dizer. E pode ser que ela, entretanto, se vá. E se não, até pode alcançar o século. Já se verá. O que este ano se viu é que a essa mulher de laboira, robusta como um toiro, isto é, que extraordinariamente se sobrepunha a tantas mulheres extraordinárias, com um bando de filhos em volta do avental, que governava um galinheiro de duas dúzias de ovos ao dia, meia vara de porcos e uma quadrilha de arados, mai-lo o pessoal auxiliar, aquela mulher que sabia cantar as cantigas das ceifas e das mondas, mai-las das laboiras e bindimas e, ao domingo, fazer uma roda de namorados, moçoilas e rapazes novos, e pô-los todos a bailar, essa mulher que sabia vigiar a tradição e que, sem falar alto, em botando faladura, até os homes a escuitavam, e os pregadores também, essa mesma, sim, dessa mesma, a Gustinha, houve de saber-se no princípio deste ano que empequenecia a compasso dum só pestanejar. Sem demora, agarrada a um chamiço tosco de medronheiro, revelha e seca como uma raiz, assomou-se à Igreja de São Çupriano, como uma sombra, numa das raras vezes que o Padre Novo lá foi, para que ele le botasse a Unção Santa. E ele la botou, diz o povo, como le competia. Nem mais.
Desde esse dia, Gustinha deixou de cantar as nossas cantigas, de dizer os nossos ditos, contos, refrães e lendas, e já não bota cintenças. Dizem que alguma coisa ela deve ter visto ou sentido, ou pressentido, coisa que ninguém sabe e só alguns, poucos, como ela, entreveem. Agora passa calada o fio dos dias, das semanas e dos meses, talvez à espera do céu, quem sabe, e de cando em vez, lá vai cantando baixinho à Imaculada Conceição, como quem embala um menino:
Ó mais formosa *
que a linda rosa do meu jardim
no berço lindo, a luz sorrindo,
branco jasmim.
Meu doce Jesus menino
de rosa, lírio mortal,
vinde nascer em minh’alma
possuI meu coração.
(* Cântico da Paróquia de Aboim da Nóbrega, Vila Verde)
Ou essoutro que ninguém sabe onde ela o achou:
Senhora do manto lindo, **
mostrai que sois nossa Mãe;
olhai para nós, sorrindo,
e sorriremos também.
…
Senhora do manto-puro,
quer diga sim ou quer não,
o mundo está seguro,
na concha da vossa mão.
…
Senhora do manto-brilho,
o caminho custa tanto!
Levai-nos ao vosso Filho
nas dobras do vosso manto.
…
Senhora do manto-neve,
que nos cobre e agasalha,
assim que a morte nos leve
seja ele a nossa mortalha.
(** Cântico do Santuário da Senhora do Sameiro – Braga)
Oito círios
Em finais de junho deste ano, muito para lá de longe das luzes de Natal – que quase só brilham no Advento! – fui às Freirinhas do Sorriso comprar presépios. Responderam que não havia, mesmo quando disse que não ser para comércio, mas para oferecer. Mas não mais havia, e nada trouxe.
Em finais de outubro, avantajei-me e fui-me lá de novo; disse quem era e disseram-me que dispensariam cinco – Nada mal, disse-me eu a mim mesmo. Entretanto, convidaram-me a entrar na silenciosa capela privada da comunidade e vi uma Menino Jesus das Palhinhas tão lindo, tão lindo e tão grande e de sorriso tão gentil que, de pronto, me roubou o coração. De braços estendidos, sorrindo, o Menino falou comigo:
– Leva-me contigo!
Eu respondi-lhe:
– Não posso! Tu és das Freirinhas do Sorriso!
– Leva-me contigo, insistia-me ele!
Não podendo consolá-lo, contrariei-o de vez:
– Ficas aqui, nesta cova de Belém, que ficas bem! E eu vou para casa trabalhar e levo-te no meu olhar. Concordas?
Concordasse que não concordasse, ficaria e ficou. Mas o que naquela hora mais me agarrou foi que o Santíssimo Sacramento estava exposto e, rodeando o altar, estavam oito velinhas de cera imaculadamente branca, todas mais que octogenárias, todas mais que muito pequeninas, todas em cadeira de rodas, de roupinhas muito humildes, muito caladinhas, de coração ardente, olhar todo em Jesus! Ainda pensei que dormitassem e, duvidando, rodei levemente o olhar para um lado e levemente para o outro, mas elas estavam vigilantes e despertas, como quem está no céu, entre anjos contemplativos!
E fiquei-me ali, mudo e quedo, durante um bom trancalhaço de tempo; e é assim que, este ano, o meu presépio mais que uma imagem dum menino a sorrir, terá, sim, diante da manjedoira, oito pequeninas cadeirinhas de rodas. É que mudo regressei a casa, pensando nisto: quanto vale hoje um velho ou velha? Obviamente muito, mesmo que o não saibamos sopesar! Quanto pode render um entrevado em casa? Provavelmente nada e, se for azedo, até será de fugir! E quanto para o mundo vale uma pessoa que reza, velha seja ou não, leiga, frade, padre ou freira, governante ou bispo? Muito vale qualquer desses velhos, claro! E como imagino que nenhuma daquelas Freirinhas do Sorriso algo trabalhe, algo renda, e juntas elas só deem um valente óctuplo trabalho, logo concluí que do ponto de vista financeiro, aquelas velinhas orantes valham muito pouco, pouco mais que as de cera verdadeira! Deus me perdoe! Enfim, talvez pouco mais valham, sim, apesar de nada haver que tanto eleve o mundo como a oração…
E é assim que fico na dúvida: neste ano de 2024, tão manco e tão escuro, ao construir o meu presépio, este terá ou oito círios acesos ou oito cadeirinhas de trôpegas rodas. Logo se verá. Ainda não decidi.
Coca-cola zero
À semana, às oito horas, ao domingo, às dez, tenho como ajudante na Missa um menino especial. De coração bom. Voz grossa e doce. Atento. Disponível. Serviçal. Colaborante. Interessado. Inteligente e abispado.
Não vou dizer o nome, porque toda a gente o conhece bem, gosta dele e sabe que o que aqui escrevo é inteira verdade. Só não vem à Missa se estiver doente. No resto, ajuda, canta e reza, às vezes, a destom e a destempo, mas ninguém leva a mal. Tem quase cinquenta anos e notáveis dificuldades em fazer-se entender. Mas quem é que disse que para ajudar – sobretudo se todos sabemos o nosso papel de cor, isto é, de coração! – tínhamos de falar? Pelo menos na Missa isso é possível; bastante é falar apenas com os olhos – em silêncio.
Um destes dias, descendo eu, encontrei-o subindo a Rua do Carmo. Trazia-a uma saca plástica na mão dum supermercado local. Quando nos cumprimentamos, ele ergueu a saca pelas asas, uma em cada mão, e impôs que eu visse o que trazia. E eu espreitei, claro, e vi; vi e mesmo perante a evidência ainda lhe perguntei:
– Que trazes aí, Fulano!
De coração enorme e palavras escassas, imperou-me:
– Ola! Ola outra vez!
E eu voltei a olhar, claro. E quedei-me novamente sem perceber. Aí, ele acrescentou:
– É para a Igrecha! Vou à Igrecha!
Estava ele, visivelmente confundido, e quase a embirrar comigo, como se eu houvera feito propósito de parvo; porém, como que apercebendo-se de que eu continuava sem sinais de perceber, disse-me:
– Fostetu que peliste!
– Como fui eu que pedi, menino!?! – Interrogava-me também eu a mim, meio descoroçoado e quase aborrecido.
– Mas foste tu que peliste, pala o Fladinho!
Ah, sim, aí sim, aí finalmente acordei e percebi e fiz um grande e Ahhhhh! que quase o assustou! E eis que, em honra de tal dedicado menino, meu amigo e ajudante, o meu presépio deste ano, terá também uma Coca-Cola Zero. Ficará lá em recordação de tantas e tantos que, durante este Advento, mais uma vez, encheram O Saquinho do Fradinho e permitiram que, juntos, ajudássemos a preencher melhor o prato de algumas famílias pobres.
Bacalhau não deram, mas digo-vos uma coisa: aquela Coca-Cola Zero vale mais que o porão dum navio carregado dele!
*** Oito dias depois, foi uma Pepsi!
António Pedro Pereira
E vou colocar o António Pedro que morreu, hoje, antes dos cinquenta, a escassos dez dias do Natal. A ele, e aos que mais o choram: a mulher, Susana, a Bia e o Pedrito.
Dizem que morreu sentado numa cadeira no fundo de um navio. Trabalhando só, morreu só, sentado naquela cadeira. A cadeira não tinha folha d’ouro nem berloques nem cornucópias nem veludo, mas ele nela morreu, ou como rei que manda, ou como almirante que abre uma rota nova no infinito mar.
Sim, o meu presépio deste ano tem ainda uma cadeira e um rei, ou almirante; e nenhum deles maior que um humilde operário. Como José.
Carmo do Fradinho e 16 de dezembro de 2024