Frei João Costa, OCD
1. Quem pense que a vida toda de José foi dar com o mascoto e a tamborilar salmos talvez acerte. Mas só em parte, pois foi muito mais que isso – José foi o esposo da Mãe de Deus e o pai do próprio Deus. Aqui, ao substantivo pai, devemos apor (pelo menos) um adjectivo: legal, nutrício, putativo, adoptivo, tutor, dispensador… e muitos, muitos outros mais. Que possamos qualificar a São José com muitos títulos significa tão-só a nossa dificuldade em defini-lo, jamais em nomear a sua dificuldade de saber e aceitar qual fora o seu papel na casa de Nazaré, no mundo e no decurso da fé.
Há um santo que põe as coisas assim: imagine que você tem um horto todo fechado em volta. Ninguém ali entra, ninguém dali sai. Um dia uma pomba sobrevoa-o, levando no bico uma tâmara. A certa altura abre o bico e liberta a tâmara, ela cai no horto e dela brota uma palmeira. Pergunta o santo: quem será o dono da palmeira que, inesperada, no horto brota? Ninguém duvida que ela é do dono do horto. Ora, concluiu o santo, o horto é a Virgem Maria, que pela via das leis do matrimónio pertence a José; e é assim que o fruto da palmeira, Jesus, a José pertence.
José é pai de Jesus. Pai virginal, mas pai.
A este operário humilde foi confiado o jardim mais excelso, a mais bela palmeira, o mais belo fruto!
José é, pois, pai, e enquanto pai é mestre e guia. Também de oração. Ele, o humilde carpinteiro de Nazaré – e talvez não fosse tanto como um carpinteiro, mas apenas um artesão, um mãozinhas, como em certas terras se nomeiam os faz-tudo, porque de tudo um pouco José sabia fazer e fazia – até é mestre de oração, sim.
2. Como sabido é, José é de Belém. Foi na casa de seu pai Jacob que aprendeu a rezar. Ali aprendeu a peregrinar também, pontualmente, ao templo de Jerusalém, três vezes no ano: nas festas da Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos. Ali aprendeu a abençoar as pessoas, a família e os filhos; a abençoar o trabalho, os frutos e os alimentos, os caminhos, os campos e os animais. As alvoradas e a primeira estrela da noite. E jamais cruzava o umbral da casa paterna, e mais tarde a sua, a de Nazaré, sem rezar a berakot, uma das sete bênçãos fundamentais de todos o judeu: Baruk ata Adonai, melek ha olam (Bendito és tu, ó Deus, rei do universo).
Para que não se diga que escrevendo-se a biografia orante do Santo Patriarca nos olvidamos de algo aqui alinhavar, digo, pois, em resumo, que São José foi um delicado mestre de oração, simples, humilde, confiante, segundo os rituais da tradição judaica a que pertencia. Por exemplo, e para que conste, tendo-lhe nascido o filho, ele O circuncidou. De facto, oito dias depois do nascimento, correspondia-lhe – e não a um sacerdote como a arte nos faz crer – a honra de imprimir no corpo do menino o sinal de pertença ao Povo de Deus. E ao proceder à incisão, o patriarca rezou: «Bendito seja Jahvé, o Senhor, que santificou o seu bem-amado desde o seio de sua mãe e na sua carne gravou a Lei. Ele marca os seus filhos com o sinal da Aliança para lhes transmitir as bênçãos de Abraão, nosso pai». Ao que os assistentes contestaram, dizendo: «Feliz daquele que Tu escolhes e atrais para viver nos teus átrios» (Salmo 65:5).
3. Sim, José rezou toda a vida e a vida toda. (Perdoar-me-ão se o houver de repetir; ou se aqui o deixar mal apontado…) Sim, rezou, e rezou como mestre.
E o que se espera de um mestre é que saiba ensinar. Nos saiba ensinar. E por aí estaremos bem, creio eu, pois se ele ensinou a Deus…
Ora, se ninguém dá o que não tem, vamos ao que o Mestre da oração tem, e com o qual, profusamente, nos pode ensinar. Muito antes de ser o esposo da escrava do Senhor, já José era um justo – um santo de Deus. E apesar disso, varria a oficina, arrumava as ferramentas, esfregava os pratos na cozinha. E algumas vezes também mascotava os dedos. E saudava e ria com as crianças, e inclinava a cabeça perante os anciãos. Trabalhava laboriosamente. Frequentava a sinagoga segundo o preceito, lia a Torá e os Profetas, dava esmola, cuidava os necessitados, defendia os fracos e ajudava nos trabalhos a quem precisava.
E orava sempre. E não falava muito, claro. Como não falou no primeiro Natal. Como não falou, nem aos pastores nem aos magos. Nem respondeu a Simeão quando, aos quarenta dias, por ele foi saudado ao ir apresentar o filho ao templo, cumprindo o preceituado pela Lei, a fim de que elevando-O para o Altíssimo, O ofereça a Deus, pois era o seu primogénito. Não, não o fez como quem dedicava um filho, mas como quem oferecia a Hóstia Santa e Imaculada! E José orava sempre.
Na fuga para o Egipto, dormiu aqui e ali com um olho aberto e outro fechado: o fechado, para descansar; o aberto, para mirar e inteirar-se da cara da Virgem que dormia; e para aspirar a respiração do Menino, recostado contar o peito da mãe. E há quem diga que também isso é orar.
Aliás, José é um homem a quem a alma treme, só por ter de proteger a seu Deus bebé, e mais tremia por não saber por qual razão Deus a ele se submetia e o metia naqueles apuros, em vez de o guardar e o proteger a ele, José. E José rezava e rezava quando Deus, a diário, se lhe submetia, e submetendo-se-Lhe, lhe trazia umas ripas, ou lhe varria e acomodava a oficina a seu mando! Que mistério! Que oração!
4. José rezava sempre, e não, não era macambúzio, mas alegre. E bom cantor – um dia alguém lhe disse: és um grande artesão, mas poderias ter sido um excelente cantor e dançarino! Ambos sabiam que sim. Claro que o seu dia a dia era trabalhar – pudera! Mas, se na oficina, cantarolava mais a gosto, era tão-só porque Maria, ali ao lado, era toda a sua alegria, toda a sua graça e, cantando, qual rouxinol enamorado, ela lhe devolvia toda a santa alegria de volta! Ambos trabalhavam, e trabalhando cantavam, e depois, rezavam, que uma coisa era verdade: para José o trabalho era um a canção e uma oração!
Naquele tempo, os meninos tinham uma idade para estarem sujeitos à mãe e outra ao pai. E em ambas se sujeitavam aos dois. Fácil é de perceber. Se à nascença eles dependiam quási só da mãe; depois passavam para a jurisdição do pai. Finalmente, ganhavam autonomia. Como não compreender que o menino se faria homem imitando o pai? E a menina a mãe? Claro que Jesus aprendeu a ser homem com José. A trabalhar como José. A serrar como José. A negociar como José. A cantar como José. A rezar como José. A mirar como José. A calar como José. A ser varonil, como José! Sim, o modelo de masculinidade de Jesus foi José. Desse homem laborioso e afectuoso aprendeu Jesus o trabalho e a oração. Se o trabalho não tinha segredos para José, a oração também não. E um e outra, Jesus os aprendeu de José. Como não… E se foi fiel na sinagoga, como fiel foi em Jerusalém, também na intimidade da casa de Nazaré, segundo a tradição judaica, Jesus rezou e dirigiu as orações familiares, tanto pela manhã, como ao meio dia e à noite, como nas principais celebrações litúrgicas. Ah, e como não, também na oficina, ao lado de José, aprendeu ele a alternar trabalho e oração. (E até suspeito e antecipo em José uma certa ânsia: a de que o Menino alcançasse rapidamente a idade adulta, para com ele rezar os Salmos de David…)
Sim, sim, desculpai se repiso: trabalhando e caminhando lado a lado com José, Jesus aprendeu rezar e a ir à sinagoga, isto é, a participar na oração comunitária e, permanecendo ao dado de José e, sentado a seu lado, aprendeu a escutar silenciosamente a leitura da Torá. Ah, e ousaria ele privar José do gosto de, juntos, recitarem os salmos, diariamente, interpoladamente, como monges, na oficina? A delicadeza, a terna firme e humildade, a simplicidade e hombridade de Jesus são, obviamente as de José. Foi com ele que Jesus aprendeu. E se assim era o filho, como não seria o pai! Também na oração.
5. No lento discorrer das horas do dia, José contemplou, saboreou, deliciou-se e amou o Filho de Deus, – o seu filho, entenda-se… – entretido com as fitas do chão da sua oficina, e depois, chegando-lhe, diligente, o martelo e a pua, e por fim, aprendendo e auxiliando-o, e por último, assumindo a direcção do trabalho.
Ah, e como não – e lá vamos nós outra vez ao enlevo de José – por quantos momentos, não parou ele os trabalhos, ou para se entreter mirando o filho a brincar, ou para, simplesmente, lhe contemplar os caracóis do cabelo? Ou, tendo sido ali deixado por Maria, na alcofa, para escutar a música do seu sono?…
Nos gozos e nas durezas do trabalho, José foi pai e varão laborioso e mestre de oração e da vida interior. Aprendeu a ser mestre só de olhar para Jesus, só de olhar por Jesus, na doce e silenciosa responsabilidade de ser seu pai.
E celebrava jubilosamente o Natal de Jesus, e o aniversário da Virgem. E da oficina trazia e oferecia-lhes presentes – certa vez, a Maria, ofereceu-lhe uma arca de madeira, e ao entregar-lha, disse-lhe: Ave Maria, cheia de graça, o Senhor está contigo… Surpreendida, ela olhou a grande e bela arca, e brincando, saltaricou-lhe para dentro com o Menino ao colo, mas logo pediu para sair porque aquele túmulo de madeira pressagiava-lhe algo.
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6. Um dia, ao levantar-se da cama, José trazia má cara. Não era nada, garantia, apesar das dores. Mas a mulher pôs-lhe a mão na testa e ela ardia de febre. Estava doente; e aquela seria a última vez que se sentaria com eles à mesa. Jesus impediu-o de ir para a oficina, e ele nem forças teve para obstar. Pesado, deitou-se, de novo, na enxerga. E oficialmente passou a haver um doente em casa. Não tinha apetite, tinha dores. E vieram as amigas de Maria, e trouxeram-lhe mezinhas e plantas medicinais, mas até bebericar um chá lhe custava. E Jesus, o filho do carpinteiro, o orante que aprendera de seu pai, lá ia rezando, e com o maço dando, e trabalhando com a serra e o martelo, o mais baixinho que podia, para não incomodar o mestre. Por fim, Maria também perdeu o apetite. À cabeceira de José, as noites passaram a ser muito longas e muito mal dormidas. E os dias como as noites. E rezava. E rezava. E rezava. E enquanto Jesus trabalhava, Maria rezava. E enquanto José sofria, Maria rezava para que Jesus, o Filho de Deus, fizesse uma porta que fechasse e deixasse a morte do lado de fora da casa – mas que se fizesse sempre e em tudo, a vontade do Altíssimo, sempre, sempre, concluía-lhe ela. E entrementes, baixinho, José e Maria, mais ela que ele, falavam do primeiro Natal. Do Glória cantado pelos anjos, do burro e da vaca, da visita dos pastores e dos magos. De…
E, contemplando os dois, Jesus ouvia em silêncio. Rezava em silêncio.
Então, a certo momento, Maria viu que Deus se ergueu, se aproximou do leito do enfermo, pôs as mãos sobre a cabeça de José. E abençoou-o. Quando as retirou José tinha expirado, e Maria era a viúva do melhor esposo que o mundo jamais vira.
7. Quem isto ler haverá de me desculpar por em nenhum lugar ter abordado José como homem do silêncio – e como o silêncio é necessário na oração! Não tem desculpa, eu sei. Mas também não foi ignorância minha, nem desleixo. Nem contumácia. Nem falha de espaço. Foi sim, decisão, para que as últimas linhas fossem mesmo sobre o assunto.
A verdade, é que mirando José como mestre de oração – como Santa Teresa de Jesus e outros o apostrofam – o que menos importa é o seu mutismo feito ausência de palavras. Não. Por si só, manter a boca fechada não é sinal nem de virtude nem de oração, porque o que São José nos ensina é bem outra coisa: é o valor do silêncio de quem está perante o mistério!
A José coube o que a mais nenhum homem tocou – ver-se ante o mistério de Deus, indigente e feito carne, feito bebé, feito menino! O mistério de uma Virgem que engravida sem concorrência de varão! E, concomitantemente, como no seio pequenino da Virgem coube O que os céus não souberam nem puderam encerrar!
Perante o mistério, José calou-se e contemplou. É o homem do silêncio. O patrono dos contemplativos.
Sim, calou-se ao ver que Deus escolhia um homem – ele mesmo, José de Belém – para guarda do mistério de Deus, para protector dos protagonistas principais do mistério: o Filho e a Mãe! E lá restava ele, sem saber como aceitar que as suas mãos rijas, laboriosas e suadas tinham sido eleitas para defender o mistério da Incarnação.
Havendo imensos palácios e vilas formosíssimas por tantos recantos e metrópoles do Império, como fora Deus escolher a casucha de um artesão da Galileia, numa aldeia esquecida, para ali o Seu Filho crescer e fazer-se homem? Não reparara Deus que a casucha nem portas tinha, senão uma cortina remendada, debotada e envelhecida?
Ao ver-se espectador e actor de tal mistério, o maior desde a criação, e até bem maior que este, e mais ainda, ao ver-se nele implicado como personagem fundamental, José ficava em silêncio por não compreender o actuar de Deus. E rezava. E contemplava. E aceitava. E rezava.
Sim, é certo que quase não falei do silêncio de José. E a razão foi esta: que haveria José de dizer, de dizer-nos, se também ele estava envolto na nuvem do mistério? – Qualquer palavra que dissera tolice seria.
Quem contempla o mistério não fala, e se fala não sabe o que diz… E José não falou, só contemplou, calou e viveu o mistério da Incarnação no seu interior.
8. Calou. E ensinou como um mestre.