Armindo Vaz, OCD
Todos de acordo! Não se pensa a relação do ser humano com Deus de forma abstracta, prescindindo da situação concreta das pessoas, do seu tempo histórico, da sua cultura e religiosidade e de outras circunstâncias. A palavra da fé é sempre cultural. É o que também se observa na Bíblia. Numa fase germinal da captação de Deus e à procura da sua imagem mais perfeita, quando, lá pelo séc. XI a.C., alguns crentes de Israel pensavam piamente que Deus conduzia favoravelmente a história do povo, outros israelitas, perante a invasão opressiva e destruidora por parte de um povo vizinho, interrogavam-se dramaticamente: “Se Deus está connosco, por que nos acontece tudo isto? Onde estão todos esses prodígios que nos contam os nossos pais ao dizer-nos que o Senhor nos tirou do Egipto? É que agora o Senhor abandonou-nos, entregou-nos nas mãos dos madianitas!” (Jz 6,13). Esta lamentação interrogativa que lançava raízes no saibro da amargura punha a fé em sentido e a dar sentido transcendente aos acontecimentos. Diferia de uma doutrina filosófica, teórica, que racionalmente pensa ser impossível que não exista Deus. A fé bíblica em Deus dialoga com a razão como urgência interior, expressão e caminho de racionalidade: provoca e estimula a razão e a razão dá suporte à fé. A fé compreende as razões da razão na procura da verdade, mas supera a mera ideia de que a razão deve vencer: quem deve vencer é a realidade nua e a razão escondida (chamada hypónoia por Platão), que é mais do que aquilo que a simples razão alcança. De facto, para o homem bíblico, se não havia verdadeira fé sem razão, também não havia razão sem fé. E, porque a urdidura que em épocas sucessivas entretecia a razão com a fé era de seda frágil, constantemente a fé interrogava a razão: «Até quando, Senhor, estarás irritado? Para sempre?… Por que hão-de perguntar os povos: “Onde está o seu Deus?” Que nós vejamos reconhecido entre os povos que foi vingado o sangue derramado dos teus servos… Até quando, ó Deus, o inimigo nos vai ultrajar? Poderá o adversário desprezar o teu nome para sempre?… Ergue-te, ó Deus, defende a tua causa e lembra-te das ofensas que todo o dia te fazem os insensatos» (Sl 79,5.10 e Sl 74,10.22).
Recentemente, porém, gente bem pensante dispensa ou a razão ou o gosto pela elevação espiritual. As núpcias biblicamente celebradas entre uma e a outra evoluíram para a separação ou para o divórcio. Mas a fé sem a palavra da razão pode ser facilmente pensada como uma espécie de cárcere. Compreende-se, pois, que, a fé rija seja adversa aos devaneios da crendice. É-o sobretudo porque não está disposta a atirar para o cesto dos papéis o Livro dos livros e, com ele, a consciência fulgurante da brevidade da vida humana, por um lado, e da eternidade do sentido dela, por outro: «O homem é como um sopro: os seus dias são como a sombra que passa» (Sl 144,4). «Respondeu Jesus: Eu sou o pão da vida… Quem come este pão viverá para sempre» (Jo 6,49-58). A fé bíblica, na sua afinação final, não deixa o crente a reconciliar-se com a realidade da morte. Aponta-lhe a vida. Faz-lhe compreender a sua relação com o tempo e a necessária indignação causada pela morte física que traz dentro de si. Sente que a superação das limitações humanas está no mistério da Encarnação do Filho de Deus no homem Jesus de Nazaré, cuja narração e gramática cristalizou precisamente na Escritura. Quando a fé descobre a consistência do seu conteúdo, convida a razão a lê-la de joelhos, a ler a vida através dos olhos de Jesus, de Paulo e de outros que a vêem iluminada pelo fogo de uma energia irredutível. A força que habita o ser das personagens bíblicas electriza os que as escutam: «Jamais homem algum falou assim como este homem fala» (Jo 7,46). No espírito da Escritura corre “o sangue dos espíritos superiores”, onde fala o Espírito da verdade. A pura energia da existência perpassa os evangelhos. E o sentido de humanidade é a sua medida.
Porque na Bíblia a fé se casa bem com a razão, no seu conjunto – os salmos são exímios nisso – grita a urgência de pôr cobro à infâmia da desumanização das comunidades humanas, da violência gratuita ou paga, das guerras trituradoras de vidas. O exercício, feito no Antigo Testamento entre alguma violência e a correcção dela, feito de aprendizagem para a boa convivência e para a paz entre as pessoas, culminou no Novo Testamento na mensagem e na acção salvadora de Jesus, que, de forma mais densa e definitiva, pela epifania do amor divino na cruz, mostrou que só o Amor pode salvar a humanidade. Na cruz ensanguentada pelo Filho, Deus rejeitou toda a espécie de violência e mostrou estar do lado das vítimas deste mundo. Nesse ponto final, a fé bíblica é uma acusação viva à barbárie. Mobiliza a esperança e o génio humanos. E é mais da ordem do existencial, com abertura ao sentido da vida, que vem de cima, do que da ordem do intelectual, que gostaria de demonstrar o que não é demonstrável só com a razão. De qualquer forma, não renuncia à compreensão. Empenha a vida com requinte, procurando crer para compreender: «Senhor, por que nos acontece tudo isto?»