Armindo Vaz, OCD

Em tempo de Natal os cristãos celebravam há dias a festa da Sagrada Família, que notou a falta de uma casa para Jesus nascer (Lc 2,7): o Natal de Jesus não aconteceu “em casa” nem numa casa. Mas hoje não pode – não deveria – haver Natal sem casa. A crise de habitação no país protesta e grita pela necessidade dela: não se pode viver sem casa! Até os migrantes que saíram de casa voltam a ela com saudades na quadra natalícia. Meditemos sobre a sua importância sociológica e sobre o seu simbolismo humano.

«My home, my castle!» – dizem os britânicos: «a minha morada é o meu castelo», significando, entre outras coisas, que a morada é o refúgio mais seguro e confortável, onde a pessoa se sente como no seu castelo. Podemos visitar casas de amigos, umas mais bonitas que outras. Mas ‘viver mesmo’ é na nossa própria casa. Ela, o espaço mais frequentado por nós, assiste ao melhor da nossa vida. Na casa de pessoas e famílias também há roturas, tensões, ódios incontidos, separações fracturantes, divórcios, divisões mortíferas. Mesmo assim, o simbolismo da casa/morada remete-nos preferentemente para a sua carga positiva.

De facto, a casa é a primeira estrutura de acolhimento da pessoa que nasce. É onde se vive e se morre. Não tem só paredes, traves e repartições. É uma construção de pedras vivas cujo cimento é o amor. A casa é o santuário do crescimento amparado, o berço dos afectos, aconchegado no seio de uma família. Casa onde se cresceu, podem deixá-la os pés, não o coração. Dizer «casa» é dizer comunhão de vida, vida familiar, vida em comunhão, onde se está «em união com» e se descobre a doçura da ternura murmurada, do amor sempre oferecido e renovado. Conviver na mesma morada permite aos pais, irmãos ou filhos dizer ao outro: “estou aqui para ti”, “existir faz sentido, porque tu também estás aqui”. A casa é o lugar onde as pessoas estão à vontade e onde, por não estarem expostas, partilham descontraídas o rir e o chorar, o sofrer e o gozar, o mimo e o carinho. A morada é o lugar do encontro diário e das relações desejáveis, em que a vida é mais verdadeira e íntima, onde os abraços são mais genuínos.

Num recanto da morada é o único lugar onde somos capazes de estar nus, isto é, de nos vermos como somos, de vermos o que verdadeiramente somos, sem máscaras, vestidos só com a transparência e a autenticidade do ser para o outro. A casa própria facilita o ser sincero sem ser agressivo, o pedir sem reivindicar, o dar sem negociar: favorece a excelência da gratuidade e o valor do ser em detrimento do ter, do possuir e do aparentar. A morada é o espaço onde a pessoa se encontra bem, onde o amor se entranha, onde a zanga se dilui, onde a compreensão, o perdão, a reconciliação e a harmonia ‘estão em casa’. Aí a pessoa recebe dos pais a memória dos antepassados, bebendo todos os dias os ensinamentos que eles têm para comunicar e partilhar. É o espaço de comunhão nos afectos mais enternecedores e onde primeiro a pessoa aprende a amar. As grandes apostas da vida são as que dizem respeito à própria casa e à família.

Os habitantes na casa fogem da insegurança e dos medos, suscitados não só pelas intempéries, mas também pelas agressões do meio ambiente estranho, animal e humano. A morada é lugar de refúgio, porto de abrigo, ninho de conforto. Quando os perigos espreitam, a morada está à nossa espera, acolhedora e protectora como sempre: por isso, o melhor de uma viagem é o regresso a casa. E é um espaço interior, repositório das emoções e dos sentimentos mais marcantes da nossa existência, que nos remetem para o melhor de nós próprios. É o lugar onde mais falamos com os da nossa família e mais nos confrontamos com nós próprios e com os outros. É o lugar de escuta, de confronto e das comunicações preferenciais. Na nossa casa escuta-se antes de falar; e o filho do crente aprende a rezar, a escutar Deus e a elevar-se para a transcendência: aprende a incluir a transcendência na sua imanência. A morada é lugar importante da vivência e da transmissão da fé. Nela, a fé é ‘mamada’, recebida por filhos, netos, sobrinhos, afilhados.

Mas a morada também é o espaço aberto aos outros, propício a fazer comunidade e comunhão, onde se podem acolher os amigos, para partilhar com eles a palavra reconfortante e o banquete da comunhão na amizade. A realidade e o símbolo da morada remetem imediatamente para acolhimento, sensibilidade, com-paixão (com-viver a mesma paixão do outro). Na visita de um amigo, o bem-querer invade a casa, gerando uma aura de benevolência. Uma existência harmoniosa sente alegria em abrir a morada à visita de outras pessoas, com o desejo de que “se sintam em casa”. A nossa morada é lugar de abertura ao mundo que rodeia a família e de alargamento do tecido da comunhão humana. A morada é, de algum modo, estruturante da existência humana, por congregar em si a história da pessoa e da família.

Atendendo a estes e outros conteúdos da casa, a fé cristã percebe o drama que é o Filho de Deus ter querido nascer na pessoa de Jesus e a Mãe não ter encontrado disponível uma casa para o dar à luz. «Veio à sua casa e os seus não o receberam» (Jo 1,11). Ao negá-la não sabiam a quem a negavam. Agora sabe-se: «Fui forasteiro e não me acolhestes… Tudo o que não fizestes a um destes pequeninos a mim não o fizestes» (Mt 25,43-45). Este saber é mais uma consequência do Natal.