Armindo Vaz, OCD

Aconteceu mesmo. Na sala onde decorria a prova de desenho, a professora passava por entre os alunos que rondavam os 6-8 anos, para os ajudar. A um dado momento, a sua atenção deteve-se junto da carteira de uma miúda: – «Que está a menina a desenhar?» – «Estou a pintar Deus». – «A pintar Deus? Mas nunca ninguém viu Deus, ninguém sabe como Ele é, ninguém sabe a que se parece!» – «Não sabem?! Mas vão ficar a saber! Só mais 5 minutos!». E a professora continuou sorridente, em pés de veludo, por entre as crianças, como se nada de importante tivesse acontecido. Na realidade, em surdina tinha desencadeado um acontecimento teológico de alto nível.

A professora tinha razão: «A Deus nunca ninguém o viu» – afirma o evangelho de João (1,18). Mas a menina também. Vejamos. O evangelho continua: «…o Filho unigénito…, ele é que o revelou/interpretou [deu a conhecer]». Ou seja, segundo a fé apostólica, o Filho eterno de Deus incarnou, isto é, incorporou-se (o conceito hebraico de carne remete para a realidade corpo), adquiriu um corpo no homem Jesus de Nazaré, que apareceu e foi acreditado como o rosto visível do Deus invisível: qualquer tentativa de redução desta corporeidade de Deus é uma infidelidade à condição humana e ao Deus de Jesus. Paulo é eloquente a respeito desta Incorporação: «…Deus acendeu [a luz] nos nossos corações, para iluminar o conhecimento da glória de Deus no rosto de Jesus Cristo» (2Cor 4,6). Dado que na cultura hebraica a «glória» era o peso, o ser, a pessoa enquanto projectada para o exterior, Paulo queria dizer que a luz da fé faz ver o esplendor de Deus reflectido no rosto de Jesus, que dava visibilidade a Deus. Pelo/no rosto de Jesus a fé pode reconhecer Deus: «Há tanto tempo que estou convosco e não me conheces, Filipe? Quem me viu viu o Pai! Como dizes tu “mostra-nos o Pai”? Não acreditas que eu estou no Pai e o Pai está em mim?» (Jo 14,9-10). «Eu e o Pai somos um… O Pai está em mim e eu estou no Pai» (Jo 10,30.38). Estas afirmações insistentes de Jesus seriam desconcertantes, porventura blasfemas, aos ouvidos de um piedoso judeu contemporâneo: que Deus aparecesse num corpo era inconcebível para ele. É verdade que Jesus não disse como é Deus. Sobre o “quem é”, diz simplesmente que é Pai. Mesmo assim, a menina que ousou pintar Deus terá encontrado um bom modelo no corpo de Jesus, porventura ajudada também pelo apóstolo Tomé, que viu Deus no homem Jesus ressuscitado, «metendo a mão no seu lado»: «Meu Senhor e meu Deus!» (Jo 20,28).

O da imagem de Deus é um segmento de espiritualidade muito apelativo na Bíblia. Cruza-se com o grande tema da proibição de fazer imagens de Deus, atribuída a Ele próprio: «Não farás para ti imagens esculpidas, nem representação alguma» (Ex 20,4). A ideia subjacente a essa vedação, que perpassa todo o Antigo Testamento, significava que o verdadeiro Deus não é apreensível nem representável por coisas materiais ou físicas: é radicalmente transcendente, invisível, mistério absoluto. Não se pode dispor d’Ele como se dispõe dos ídolos. As imagens de Deus usadas pela Bíblia são metáforas ou inevitáveis representações literárias.

Mas o Natal de Jesus de Nazaré foi neste ponto um sobressalto para a fé bíblica em relação à do Antigo Testamento. Sem embargo da proibição de imagens de Deus, Jesus foi visto como «imagem de Deus invisível» (Cl 1,15), «resplendor da Sua glória» (Heb 1,3). Então volta à memória a identificação feita por Jesus: «Quem me viu viu o Pai!» Saberia a menina que, ao querer pintar Deus, o poderia fazer pintando Jesus? Essa consciência inconsciente tem a sua profundidade. De facto, para quem quiser ver e conhecer Deus, a maneira mais eficaz de o fazer é procurá-lo em Jesus, o dos evangelhos, real, histórico e remissivo, que remete continuamente para Ele: na figura humana de Jesus há presença efectiva de Deus, embora necessariamente do Deus invisível, que continuará a precisar de ser acreditado pela fé. Portanto, o desejo de ver em Jesus provada a existência de Deus tornar-se-ia miragem, por pretender ver o invisível. A fé do homem bíblico já o sabia quando pôs Moisés a falar com Deus: «Moisés disse: Deixa-me ver a tua glória. E Deus respondeu: Farei passar diante de ti toda a minha bondade… Mas não poderás ver o meu rosto, pois o ser humano não pode ver-me e continuar a viver… O meu rosto não pode ser visto» (Ex 33,19-23).

Ora, num salto Espiritual sem precedentes, a identificação de Jesus com o Pai tornou possível ver o rosto de Deus no rosto humano de Jesus. Esta inovação radical do cristianismo, que vê a história humana inundada pelo abrangente mistério da Incarnação do Filho de Deus, é de tal grandeza que a maior parte das pessoas quase nem se apercebe dela. A Incarnação significa a humanização de Deus, também do seu amor. E o amor a Deus, de difícil aprendizagem ou compreensão, ficou facilitado, aproximado da sua realização efectiva, ao ser fácil amar Jesus, presença humana de Deus. Foi o encontro de Deus com os humanos: encontro histórico, que, mesmo assim, teve de ser descoberto e ‘validado’ pela fé, tão histórico como acreditado. Agora importa que as pessoas descubram as palavras e motivações apropriadas para encontrar Deus e para se encontrarem com Ele. Porquê não aproveitar o Natal de Jesus para o fazerem?