Armindo Vaz, OCD
Desde a independência do actual Estado de Israel em 1948 fomos assistindo – e assistimos – a gestos de anti-semitismo, mas também ao recrudescimento de manifestações contra palestinianos, muçulmanos e cristãos. E frequentemente vê-se esta tensão como divergência entre religiões, que concebem de forma diversa o divino e a relação das pessoas com Deus. Os leitores da Bíblia poderiam suspeitar que a base para essa tensão já está nela. Certo é que o Deus dos hebreus aparece a exigir exclusividade de adoração e a rejeitar os outros deuses ou os deuses dos outros povos e religiões. Fomo-lo ouvindo desde as sessões de catecismo logo ao aprender os dez mandamentos como ditados ao povo de Israel: «Eu sou o Senhor, teu Deus…: não terás outros deuses além de mim» (Ex 20,3).
Na Bíblia, os deuses dos outros povos eram considerados ídolos. Os profetas ridiculizavam-nos, censurando os israelitas que os adoravam: «Um cipreste… é bom para queimar. Com uma parte as pessoas aquecem-se… Com o resto fazem um deus, um ídolo, que adoram prostrando-se diante dele…, e dizem: ‘salva-me, pois tu és o meu deus!’ Não… discernem, porque… o seu coração está privado de compreender. Não reflectem em seu coração, não têm conhecimento nem inteligência para dizer: ‘queimei metade ao fogo, também cozi o pão nas suas brasas… e do resto extraí uma abominação: adoro um pedaço de madeira’» (Is 44,13-19). Por essa altura, com Israel desterrado na Babilónia (depois de 587 a.C.), o Deuteronómio, numa exortação sem precedentes à fidelidade ao seu Deus e à negação dos outros deuses, põe Moisés a dizer ao povo: «Reverenciarás o Senhor, teu Deus, a Ele servirás… Não ireis atrás de outros deuses, deuses dos povos que estarão ao redor de vós» (6,13-15). Chega a ameaçar que «quem servir outros deuses prostrando-se diante deles» será apedrejado à morte (17,2-5).
Esta era a viragem operada pela fé bíblica na história da evolução do espírito humano. É feita remontar a Moisés (± 1220 a.C.): consiste na proposta de adorar um só Deus como verdadeiro, considerando falsos deuses todos os outros, declarando-os mentira, engano, falácia genética. Por trás desta ligação transparecia a distinção entre verdade e mentira: Deus é a verdade, os deuses dos outros são mentira. Ora, esta distinção entre verdadeiro e falso, entre Deus e os deuses, foi por vezes traduzida na distinção entre amigo e inimigo: a proibição de outros deuses poderia definir e gerar um inimigo. Os adoradores de outros deuses ou de outro deus (1Rs 18,21) foram vistos como inimigos dos adoradores do Deus considerado verdadeiro.
Honestamente, este contexto literário poderia descobrir essa lógica de inimizade e até de violência. De facto, a linguagem dos textos da Bíblia hebraica que declaram luta à idolatria ou descrevem a eliminação de adoradores de outros deuses transpira violência. Não admira que o Iluminismo e o Racionalismo os tenham denunciado como textos de crueldade. Numa operação punitiva exemplar – depois do episódio da adoração do bezerro de ouro – os levitas de Israel matam à espada cerca de 3.000 homens por indicação de Deus a Moisés (Ex 32,25-35). E o ajuste de contas do profeta Elias com os 450 profetas do deus fenício Baal mais os 400 profetas da deusa fenícia Achera não é menos cruel: depois do desafio sobre quem era o Deus verdadeiro, se o Deus de Israel, se os deuses fenícios, e tendo o povo aceitado como verdadeiro o Deus de Israel, Elias degolou-os (1Rs 18,18-40). Até o piedoso rei de Judá, Josias, levando a cabo uma reforma religiosa sem paralelo (622 a.C.), destituiu «os sacerdotes que ofereciam incenso a Baal, ao sol, à lua, às constelações e a todo o exército dos céus» e «imolou nos altares todos os sacerdotes… que ali havia» (2Rs 23,4-20).
É inegável que esta fraseologia bíblica está eivada de violência. E verifica-se que, depois dos tempos bíblicos até aos nossos dias, os fiéis das três religiões monoteístas, que vão buscar à Bíblia o substrato para a sua espiritualidade e acção, exerceram violência uns sobre outros, fundamentando-se na linguagem dos respectivos textos sagrados que a descrevem. Contudo, não a exerceram de forma igual. Sobrevoando a história na generalidade, um dado chama a atenção. A tradução desta violência verbal em factos violentos por motivos religiosos quase não é atribuível aos hebreus/judeus até à constituição de um Estado israelita independente numa terra própria (aquela em que tinham vivido pelo menos desde os tempos do rei David no séc. X a.C., com invasões e exílios colectivos pelo meio, até ao ano 135 d.C., altura em que os grupos de judeus que lutaram contra o ocupante e colonizador império romano foram esmagados e vencidos, resultando daí uma expulsão massiva dos judeus da sua terra). No decorrer da história terão sido capazes de humanizar estes textos até ao ponto de os tornar – ou entender como – inofensivos na acção. Interiorizaram a distinção entre amigo e inimigo, reduzindo-a a um dissentimento interior, a um pecado pessoal, que não envolveria a comunidade, plural do ponto de vista religioso, em que o judeu estivesse inserido. A tendência para interiorizar a distinção entre amigo e inimigo reforçou-se cada vez mais no judaísmo, até ao ponto de ser reduzida a uma tensão ou conflito interior.
Se esta tese é válida, essa interiorização espontânea evitava o perigo real de a transladação da linguagem da violência, do campo e do contexto semântico narrativo próprio, bíblico, para outro contexto que não o dela – descontextualizando-a, portanto – efectivar a violência que ela não queria gerar. Ao não enveredarem por uma lógica de violência em acção que os seus textos sagrados fundadores aparentemente indiciavam, os judeus terão intuído que a violência que uma leitura à letra da proibição da adoração de outros deuses transpira não é inerente ao espírito desses textos. Terão tomado consciência de que a aparente violência verbal do Deus bíblico contra os outros deuses não visava incitar à prática da violência física contra os adeptos desses outros deuses: quem se sentiu satisfeito com isso pôs baixa a fasquia da leitura. Possivelmente pela congénita compreensão do alcance da língua original hebraica da Bíblia, do seu léxico e do funcionamento da sua semântica, poderão ter percebido que a significação desses textos não se limitava ao que diziam: estava no que queriam dizer. Não queriam fazer historiografia: eram um programa de espiritualidade. Sugeriam que o compromisso de fidelidade de Israel ao próprio Deus exigia a abstenção de qualquer culto idolátrico e de expressões de religiosidade que pusessem em perigo a pureza da fé. Tencionavam, não gerar inimizade com pessoas mas evitar reduzir o Deus transcendente à matéria: censurar a idolatria era rejeitar que o verdadeiro Deus pudesse ser não-transcendente. Se não fosse transcendente, mais valeria ser-se ateu, porque «os ídolos dos [outros] povos são ouro e prata, obra das mãos dos homens; têm boca, mas não falam; têm olhos, mas não vêem; têm ouvidos, mas não ouvem» (Sl 115,4-8). São criação humana, reduzida e redutora, deuses contrafeitos, sem transcendência. Adorar deuses seria perder do horizonte a transcendência, identificar Deus-Espírito com o físico, sem necessidade de sentido último para a vida. O judeu formado na fé bíblica percebia que a luta dela contra a idolatria era uma luta espiritual pela salvação da essência do humano, que, se adorasse deuses, se rebaixaria ao nível deles, que eram a tal «abominação» alienante. Por isso diz o profeta Jeremias dos israelitas idólatras: “Assim diz o Senhor: afastaram-se de mim; indo atrás do vazio, tornaram-se vazios” (2,5). Venerar deuses punha a esperança em objectos inferiores, projectando neles a mortalidade humana. Isto valia mesmo para expressões de fé monoteísta que viessem a adulterar a imagem do verdadeiro Deus que pretendessem adorar (como a de um deus castigador, milagreiro, intervencionista, legislador…).
Como se vê, a leitura de textos sagrados antigos e a sua interpretação mexem com a vida, influenciam-na de forma determinante, para o bem e para o mal. Se for contextualizada, despoja-os de violência. Esta nem terá sido objectivamente levada à prática nos tempos bíblicos. Não se pode dizer que Elias tenha matado 450+400 profetas; a cena de carácter lendário está revestida das cores de uma teofania para exaltar a fé só no Deus de Israel. Lida nessa cadência espiritual, queria significar a incompatibilidade de Deus com a idolatria e pôr o leitor a interagir com o transcendente, invisível mas presente. O mesmo significava a ameaça de apedrejar quem venerasse outro deus que não o de Israel; mas não era para executar. Enquanto enraizado na humanidade e espiritualidade bíblica, o israelita terá pensado que a violência põe a nu as contradições, os enganos dos que optam por ela. Viu que o novo da violência é a aniquilação do bom que o violento pode ter, gerando o ‘pior que antes’, e que as suas raízes são a vingança do amor perdido. Viu que a violência é a potência descontrolada de uma consciência deformada, alimentada com a corrupção virulenta do amor em ódio, e que, portanto, seria o aviltamento do humano. O entendimento fundamentalista dos textos bíblicos, que ao longo dos séculos justificou guerras e outras formas de violência, causará surpresas a quem não o quer evitar.