Frei João Costa, OCD
- Santa Teresa de Jesus (1515-1582) foi mulher diligente e valente num contexto de patriarcas e varões. Era de linhagem nobre, embora falida e de baixo coturno. Fundadora e escritora, dirigiu-se a suas irmãs e filhas, e a toda a Igreja, incluindo bispos e teólogos. Dirigiu-se, digo: ensinou. Foi mulher à frente, num tempo marcado pelas Descobertas, pelo enfrentamento entre Reforma e Contra-Reforma, e pela rudeza da Inquisição. Ter sido mulher num tempo tão desafiante, simultaneamente tão novo e tão velho – precisamente na hora em que ardendo a Velha começava a surgir a Nova Europa – ter sido mulher e aceitado ser guiada pelo Espírito Santo para alumiar e ensinar, e depois disso, ter sobrevivido, não foi nem empresa menor nem tarefa pouca! Bem merece, por isso, ser celebrada hoje. E lembradas as suas últimas palavras: «Morro, enfim, filha da Igreja!».
- É considerada, com justiça, um dos maiores génios da Humanidade – não apenas por católicos, mas também muitos indiferentes, tantos agnósticos e ateus – porque todos lhe reconhecem a originalidade da sua sabedoria espiritual que só pode provir duma impetuosa fonte manando-lhe da experiência e do contacto com o sublime e o divino. Era além disso mulher arguta de inteligência, senhora de uma força surpreendente e persuasiva em seus argumentos, e possuidora de um estilo vivo e atraente.
Percorrendo distâncias improváveis, por carreiros lamacentos e impraticáveis, à mercê de bandoleiros e percevejos, indómita até ao heroísmo, mostrou-se capaz de empreender a fundação de dezasseis mosteiros de Descalças, aventura que ainda hoje só pode impressionar-nos porque em cada um daqueles deixava comunidades de monjas que ardiam de zelo por Deus e pela Igreja.
Tão lúcida quão intuitiva sabia perceber em quem se lhe apresentava por diante a mola secreta que o (ou a) levantaria em favor de algo melhor e de um bem maior. Era ainda bela, de um sólido e luminoso bom senso, franqueza humilde, e elegância tão sedutora que mais cativava que amesquinhava.
Sem jamais alguma vez ter sido uma Madalena, nem sempre foi modelo de inteira perfeição. De facto, nos primeiros anos de vida no mosteiro algo se desleixou no fervor religioso. Aos 39 anos, porém, quase inadvertidamente, Deus lhe tocou o coração, e de uma maneira tão sensível que, debulhada em lágrimas, e prostrada diante de uma imagem representando Jesus atado à coluna na hora da flagelação, lhe disse; «Senhor, daqui não me levanto, enquanto não me concederdes a graça e a fortaleza bastantes, para não cair mais em pecado e Vos servir de todo coração, com zelo e constância».
Aquela sua oração foi ouvida e, de uma vez para sempre, o coração de Teresa seria só de Jesus, e os seus cuidados e trabalhos só para O tornar mais conhecido e amado. Amado, tal é o nome que de ora em diante Teresa chamará a Jesus.
À distância de cinco curtos anos da sua morte – hora que todos sempre ignoramos –, em outubro de 1577, portanto, imersa nos duros trabalhos fundacionais e no cansativo governo dos seus mosteiros, escreve a sua obra espiritual mais madura: o Castelo Interior.
Contra o sentido das convenções sociais vigentes ao tempo, temos ali uma mulher escritora, uma mestra espiritual, desarmada de conceitos teológicos, e apenas arrimada à sua experiência pessoal de Deus, algo tão íntimo e forte que a instituiu farol por cima das duras brumas que encarapaçavam o catolicismo de então. Temos, enfim, ali uma mulher e o seu castelo – coisa tão inédita quanto actual. - (Por falar nisso, quero apresentar-lhes um quadro. Existe uma pintura, creio que flamenga, mas não sei ao certo, pois no seu tanto algo me foge da memória, no qual habito sem lá me encontrar esboçado. Se bem recordo é um quadro levemente entenebrecido a sépia como um fim de tarde de outono, embora, talvez, mais bem sereno, e com um quê de melancolia. Oito décimos do espaço é ocupado por campos em pousio, o restante por um rio que se abre para um pedaço de oceano, e por um navio em modo partida. Naquele imenso espaço bucólico desenha-se uma cena central: um casal anda a lavrar; ele, atrás do arado, vai agarrado à rabiça, seguindo os bois virados para o mar; ela, atrás deles e um pouco ao lado, esparze sementes. Nem o casal nem os bois se apercebem do navio, nem do navio há sinais para o casal que fica.
Sempre li esse quadro – não sei se bem – como a partida da Europa para as Descobertas: os que vão vogam calmos e entretidos em rezas ou jogos, e de tudo o que fica se desligam e despercebem; os que ficam fincam o nariz na terra, abrem-na e semeiam-na, e não valorizam os que partem. Acerto? Não sei. Sei ou parece-me que o quadro está incompleto: por essas horas a Europa de todo não era melancólica, mas apaixonada e ardente; e, sobretudo, a norte, esturgiam-se igrejas e catedrais, e semeava-se o chão de terror e sacrilégios. É por isso que na paisagem noto uma ausência que sangra; algo falha ali: um castelo!) - Como se sabe, os castelos são dos varões, e para as mulheres prisão são, donde devam ser resgatadas por valoroso cavaleiro que advenha e as encante. Não assim, Teresa. Teresa é senhora de um castelo! Sê-lo-á sempre! Sempre! E sempre ensinará suas filhas a serem alcaidesas; e se servas, só de Sua Majestade – Jesus, o Senhor, o bom amigo e valoroso capitão!
- O castelo – e tantos havia no seu tempo, mai’la sua amuralhada cidade de Ávila que tanto, ainda hoje, se nos afigura a um imenso castelo – é o seu mais poderoso símbolo gerado em sua literatura, e aquele que melhor a representa. Assumindo que nunca ela no-lo explicou cabalmente, atentemos algumas das suas genuínas considerações:
- O castelo é a alma; e quem diz a alma, diz cada pessoa, a pessoa toda, e a sua interioridade. Logo, Teresa é o castelo; eu sou o castelo; tu, de igual. A este castelo composto de sete moradas ou mansões cada uma com muitos cómodos – uns por cima, outros por debaixo, outros pelos lados, em torno à morada central – nada lhe falta. Tem uma muralha ou cerca – é o corpo de cada um; e uma porta – a oração entendida como amizade com Jesus, pela qual se entra e se adentra rumo à interioridade. E tem habitantes; os principais são Deus e cada um. O senhor ou alcaide – no caso em apreço, a alcaidesa – do castelo é a alma, ou a pessoa, e Deus o seu hóspede.
E tem outros habitantes: vassalos e guardiões que, em linguagem da Santa, são os sentidos e potências da alma (memória, inteligência e vontade).
Todo o castelo tem também inimigos récios e tenazes; e o de Santa Teresa também: (nós próprios; e) cobras, sevandijas, peçonhas, bestas e canhões. Postados fora do castelo, os inimigos lutam para nos impedir a entrada e a demanda em direcção ao mais profundo centro. E se dentro, igual empecem, ou pior. Aliás, tudo o que, fora ou dentro, nos impeça de caminhar rumo aos tesouros da interioridade, e a sermos inteiramente livres, é inimigo, pelo que nessa conta se hajam de contar os pecados, tentações, além dos inimigos da alma: mundo, demónio e carne.
Há no castelo muitas aposentos (assim como no céu há muitas moradas). Ir evoluindo, esforçadamente, de aposento em aposento, é um duro bregar, desde o mais externo até ao mais alto e profundo centro, onde se dá a união íntima com Deus – tal é, pois, a demanda certa, da qual importa jamais desistir. - Ao longo do percurso de morada em morada, de etapa em etapa, o que para Teresa sempre mais e mais importa, é manter por toda a vida a relação com o Senhor, fixos os olhos Nele, pela via da oração, digo, pela amizade íntima, num tu a tu determinado e insubstituível.
- Neste nosso tempo tão insólito e solitário, muito convém lembrar que jamais alguém vive só, pois somos castelo onde connosco Deus sempre mora, e nós com Ele; mora, mas não esbraceja nem se impõe; aguarda-nos. Ele sabe e respeita-nos como sempre se deve respeitar o alcaide ou alcaidesa de um castelo – cada um de nós. Cabe-nos, pois, combater, defendendo-o e, desde ele, defender o doce Hóspede que em nós mora e clama pela ternura do nosso olhar, para que mais em nós se acrescente a amizade com Ele; que sempre ali mora, atenção!, e desde o mais profundo segredo do nosso castelo para nós é e desde nós nos acalenta. Para não restarmos sós, cabe-nos, pois, o esforço de ir procurá-Lo, de morada em morada, arrimados ao amor que nunca nos deixa ociosos.
Custe o que custar, venha o que vier, suceda o que se suceder, quer o mar se afunde, ou desabem as galáxias, não existe, pois, tarefa mais nobre para o cristão do que penetrar, sem hesitar nem desistir, no castelo, e mergulharmos no seu profundo centro. - É só ali que acontecem as coisas mais secretas entre Deus e alma!
Tarefa só para atrevidos que queiram nunca faltar ao Senhor! Que Ele nunca nos falha!