Armindo Vaz, OCD

Enquanto Portugal ardia irrecuperável, outras regiões do orbe terráqueo não sabiam como lidar com as cheias e as chuvas diluvianas, que causam catástrofes e arrastam muitas vidas com elas. Quando acontecem, há quem pense no dilúvio bíblico. Não são a mesma realidade. Mas são uma ocasião para desconstruir o relato do livro do Génesis 6,5-9,17 e para construir o seu sentido. Que queria dizer, quando foi escrito entre os séculos X e V a.C.?

Por falta da necessária leitura contextualizada, desembocou frequentemente – na história da espiritualidade tradicional e fora dela – em interpretações enviesadas de alguns dos seus temas, acusando Deus de crueldade implacável na destruição impiedosa da humanidade: nesse contexto, Saramago, no seu romance Caim, põe as personagens a chamarem Deus «invejoso…, malvado e infame» (Editorial Caminho 2009; pp. 164.180). Pensou-se que «a descarga de chuva sobre a Terra quarenta dias e quarenta noites» puniria com cores sombrias o ponto mais alto da onda do pecado – que teria vindo a crescer, desde a rebelião de ‘Adão’ contra Deus, passando pela revolta do homem (Caim) contra o homem e culminando na «violência que encheu a Terra»: «Toda a carne tinha corrompido o seu caminho sobre a terra». A história do dilúvio daria um perene ensinamento sobre a justiça e a misericórdia de Deus e sobre a extrema malícia humana, em que o gravíssimo pecado da humanidade só poderia ser lavado com o exemplar castigo do dilúvio cósmico: significaria que Deus não é indiferente diante do mal moral e da injustiça e que interviria matando toda a humanidade pecadora e concedendo a salvação ao justo. Seria uma grande lição moral e indicaria o mistério do mal e do julgamento divino, executado de modo duríssimo e inexorável, prefigurando o ‘juízo final’. E ligava-se a Lc 17,26ss e a Mt 24,37-39: «Como sucedeu nos dias de Noé, assim sucederá também nos dias do Filho do Homem…»).

Mas identificar a sua mensagem com a justiça e a misericórdia de Deus é irónico e cruel, dado que a narração apresenta Deus a poupar só uma família e a destruir toda a humanidade (“pereceu toda a carne”: Gn 7,19-24): isso é misericórdia?! Aliás, não se dá antes do dilúvio um aviso premonitório aos supostos pecadores, no sentido de se arrependerem e se converterem para não perecerem! Essa interpretação é insustentável.

Para compreender a história bíblica do dilúvio, é indispensável situá-la no seu contexto cultural, literário e religioso. Ora, ela é uma versão da conhecida tradição narrativa do dilúvio, testemunhada no contexto cultural do antigo Próximo Oriente desde o tempo dos sumérios (já pelo 3500 a.C.) até ao período helenista, no séc. IV a.C. Principais relatos conhecidos, evidentemente paralelos ao do dilúvio bíblico, com os respectivos sobreviventes correspondentes a Noé: um texto sumério de Nippur (em que o correspondente a Noé é Ziusudra), o mito de Atraḥasis (sobrevivente com a família, com o papel do Noé bíblico e família), redigido em acádico lá pelo ano 1600 a.C., a tabuinha XI da epopeia de Gilgameš (com Utnapištim e sua mulher a corresponderem a Noé e sua família), em acádico na primeira metade do II milénio, e a versão do sacerdote mesopotâmico Beroso, séc. IV a.C. (com Xisuthros a corresponder ao Ziusudra do mito sumério do dilúvio e ao Noé bíblico). O confronto deles com a narração bíblica obriga a concluir que ela está influenciada por eles. Como eles são mitos de origem, também o relato bíblico do dilúvio é mito de origem, um relato imaginado em função do sentido humano e religioso a dar a realidades da vida, atribuídas, para isso, a um acto criador da divindade. O mito não é mentira. Pelo contrário, contando numa história sagrada a vinda das coisas à existência, sublima o real, fazendo-o remontar ao original, às origens, ao tempo sem tempo que é o tempo de Deus: o que conta não sucedeu; liga a vida a Deus. Não sendo aceitável decompor a sua linguagem em linguagem factual, não podemos considerar o dilúvio doloroso para a terra, para os humanos e para Deus.

Lendo a narração bíblica neste seu contexto, constatamos que a compilação dos relatos que agora formam Génesis 1-11 tem os temas, o contexto e a estrutura literária da tradição mítica mesopotâmica sobre o dilúvio. Nela, o dilúvio insere-se numa narração mais ampla e dela deriva o significado. É assim na epopeia de Gilgameš, no mito de Atraḥasis e nas Babyloníaka de Beroso. Dado que os mitos de origem descrevem um processo de criação divina longo, nestes agora mencionados o dilúvio aparece como mais uma etapa, miticamente necessária, desse processo de criação da existência humana. É o que temos também no Génesis.
Aqui, o dilúvio aparece como punição de uma transgressão, ambas miticamente imaginadas. A motivação para Deus o decidir e desencadear é a “corrupção da terra diante de Deus, cheia de violência” (Gn 6,11-13): “a maldade do homem era grande sobre a terra e todos os pensamentos que o seu coração concebia eram só e cada vez mais depravados” (Gn 6,5). Esta “violência” não é factual. Como nos mitos de origem que queriam ‘explicar’ realidades penosas da vida, tem a função de uma transgressão primordial, como a hybris grega: contando que os humanos criados por Deus estariam a interferir no mundo divino, o mito significa que não se pode pôr em causa a ordem do universo e a fronteira intransponível que deve distinguir necessariamente o ser humano do Ser divino (“corrupção da terra diante de Deus), a imanência da transcendência. A transgressão é metafórica, uma causa desproporcionada, sem cores éticas ou morais. É funcional, um pretexto procurado para que o dilúvio apareça ‘justificado’ e não como decisão arbitrária e caprichosa da divindade. [o mais interessante da explicação seguirá no próximo número]