Frei João Costa, OCD

1.           Para começo, sinto necessidade de contar duas estórias. Aí vão.

Primeira. Fui noviço na verdura dos meus dezoito anos – essa idade em que tudo sabemos e nada tememos; ou, pelo menos, eu era assim.

Recordo que durante o meu tempo de Noviciado a nossa Província recebeu a Visita Canónica Geral, na pessoa de Frei Francisco Javier Jaramillo. Era colombiano. Gostei do homem: era ameno, atento e firme, paciente, disponível, simpático e entrevistou-se, inclusive, com cada um dos cinco noviços que éramos. Pela candura do seu espírito e pela luz da sua inteligência – e àquela data eu não era mais fácil de convencer que hoje – como tanto apreciei falar com ele!

Recordo que depois de nos ter escutado a todos durante uma manhã inteira, almoçámos. E depois do almoço ficou-se a cavaquear connosco sobre como era a Ordem, onde estava, para onde se esticava ou esticaria, e para onde apontariam os voos futuros que seriam também os nossos, claro está.

O diálogo terminou assim:

– Bem, vou fazer nada.

Fazer nada, inquiri, ignorante, quase sentindo-me insultado?

– Sim, gosto muito de fazer nada, recalcou semi-irónico, voltado para mim, talvez intuindo que assim mais me espevitaria!

– Vai fazer a sesta, curioso e indelicado, insisti?

– Não, não! Eu não faço sesta. A essa hora faço nada!

Fiquei tão perturbado com aquele seu inexplicado fazer nada que saí da roda bem antes dele – eu era um bocado bruto, convenhamos… –, mas a maravilha vem a seguir. Não sei porquê nem para quê – para espiá-lo não foi, isso tenho tanta certezinha como a de estar vivo! – acabei por entrar na igreja pela porta claustral e, inadvertido, dei de chofre com o P. Jaramillo, serenamente ajoelhado diante do sacrário, com a cabeça entre as suas duas grandes mãos! Ao ver a cena desbloqueou-se-me a torpeza da mente, ao mesmo tempo que me falhou a agilidade e desenvoltura para dali me retirar atempadamente, pelo que acabei entrando devagarinho, e acolitei-o, ajoelhado, dois ou três bancos atrás.

Ele ali fazia nada, afinal,e fez por longo tempo; e eu olhava como fazia.

Segunda. Anos mais tarde, já sacerdote, por causa da construção do Monte dos Mistérios do Menino Jesus, em Avessadas, vi-me imerso numa intervenção com artistas, no Porto. Foi um momento curioso. Para que os Mistérios da Santa Infância de Jesus se construíssem haviam-me exigido que os descrevesse por escrito e a voz viva, quanto ao significado e ao figurativo que deveria constar em cada um dos doze. Por meses a fio, tive de explicar, e bem argumentar, mesmo aqueles que não lhes pareciam históricos e que, por «serem efabulados pela teologia», diziam eles, não mereciam ser construídos. Quando me apercebi de tal pedido feito em tom de ameaça, dei comigo a perceber que aquilo até poderia tornar-se uma oportunidade de catequese. Se o foi ou não, não sei. Sei que sessões houve, em que os catequizandos chegaram a mais de vinte!

De facto, o caminho que começara comigo e com o mestre escultor, e com o senhor Joaquim que lhe varria o atelier, acabou por, de quinze em quinze dias, reunir muitos e muitas, alguns deles figuras públicas, das artes, das televisões, da justiça e da política. Nunca aquilo me intimidou até ao dia em que verdadeiramente fiquei encavacado. Estava eu muito animado a injectar-lhes a minha narrativa – a que eles correspondiam respeitosamente – quando alguém, igualmente mui respeitoso, me perguntou:

– Visto que você é carmelita, diga-me uma coisa: Que fazem as carmelitas nos seus carmelos? Para que rezam tanto? Que acrescenta a oração dos contemplativos à sociedade? Porque não vão antes trabalhar na acção social? Ou dar aulas? Ou cuidar de criancinhas, como a Madre Teresa de Calcutá? Porque não vão… varrer ruas?

Eu que sempre fui mais questionado (e sobressaltado) pelos de fora que pelos de dentro, só uma vez me vi verdadeiramente humilhado por um deles, mas não desta, embora esta me tenha perturbado a tal ponto que não consegui responder. Caíra-me uma nuvem tal na cabeça que, quando começava a esboçar o princípio da resposta, quase pressenti o V de vitória da plateia. E algum gozo. Antes, porém, que fosse vencido, levantou-se um homem – um Juiz Conselheiro – que sempre se mantinha calado, deu um passo em minha direcção e articulou uma resposta não muito longa, mas tão ajustada que parecia o Papa Paulo VI a falar! Fiquei-me tão tamanhamente assarapantado que nem lhe agradeci – prendera-se-me a língua, pois nunca jamais ouvira um teólogo falar assim! Passados tantos anos, já não lembro quem o homem seja. Já não lembro o que disse; aliás, o lado da improbabilidade do que dito naquele contexto é o que ainda hoje mais me se continua a surpreender. Lembro simplesmente o modo como disse e que sim, que defendeu a oração por si e em si mesma. E os contemplativos.

Lembrando estas duas estórias que, ainda hoje, tanto me fincam e alavancam, espero que neste texto possa alinhavar o contributo da oração à cidade. Que cidade, afinal, constroem os homens e mulheres que fazem nada? Entenda-se que fazer nada é muito diferente de não fazer nada, porque fazer nada tomo-o por relação gratuita, por oração, pelo contrário de negociar com, tomo-o pela actividade humana mais improdutiva que existe e por isso tão negligenciada, tão desprezada, tão ignorada. Rezar não dá sorte, não dá dinheiro, não planeia nem acrescenta riqueza. Num tempo em que quase unicamente se vive para tal, que valor pode ter a oração?

2.           Para início de conversa, assumamos o que oração não é.

Não é negociar com Deus, nem fazer-Lhe exigências; não é redutível a pedir-Lhe coisas, nem a procurar que ande enredado e ocupado connosco; não é do domínio da terapêutica, nem qualquer tipo de meditação que pacifique e edulcore; não é uma forma de O controlar, nem dá estatuto, mercê ou vaidade espiritual que se exiba na lapela, e ajude a abrir as portas certas.

(Ah, como choro, lamento e estarreço se o período anterior reduz quase cem por cento da oração que somos e fazemos nós, os católicos, – e dos outros nem falo – que, ou rezamos muito pouco, ou nos dedicamos quási só a pedir, quási só exigir, quási só a comprar ou a chantagear a Deus!)

Sim, pedir faz parte da oração, mas não é propósito único da oração. Na oração rezamos pelas nossas necessidades, mas orar é muito mais que nos auto-referenciarmos. Não, nem Deus é um génio mágico, preso numa lamparina que, sob certas condições – por exemplo, dizermos a senha certa! – se revele disponível a corresponder aos nossos pedidos, a satisfazer as nossas necessidades ou desejos, ou os alheios, que incessantemente Lhe choraminguemos; não, e não é uma máquina que vomite moedas d’ouro, mapas de tesouro ou pílulas de felicidade, e também não é um invertebrado qualquer que possa ser manipulado por controlo remoto, através nossas preces, mezinhas ou lágrimas.

3.           A oração é assunto tão desconcertante que frequentemente escapa aos teólogos, aos experts, aos poderosos e aos sábios. Já, porém, é habitual e gratuitamente franqueado aos pequeninos, perante cuja humildade se desfazem os segredos das bisagras que a velam e a resguardam.

Eu levo muito a sério a palavra do Apóstolo Paulo aos Romanos, quando nos diz: «vós não sabeis rezar como convém» (8:26); e depois recomenda que sondemos com frequência o Espírito Santo, para que interceda por nós com palavras que não conhecemos. (Não é este o espaço para desvelamentos, mas lá que é verdade que já lhe tenho sussurrado: – Vê lá, tu, ó Espírito, nas que estou metido! Olha que eu sei que sabes que eu sei e posso. Mas também sei que se agora Tu não me ajudas o que será de mim?! Aí, sim, isso lho tenho dito, e mais vezes do que alguma vez julguei vir a dizer-lhas!

E a coisa lá se resolve, mas nem sempre no modo que eu cuidaria mais plausível.

Rezar é falar com Deus, é falar com o Pai. É reconhecer que só Ele é pai, fonte e origem de tudo e de mim. Minha referência, meu sol e minha chuva. Meu mar, meu calor e conforto. Não é nunca segundo, só primeiro. Sempre. É cromo único e irrepetível, logo impossível de dá-lo ou trocá-lo por mil outros, ou qualquer outro. É donde vimos, é para onde vamos. Queiramo-lo ou não, que não sei como não haveremos de não querê-lo.

Eu entendia-me com o meu pai. A diferença entre pai e Pai é que, um dia, aquele pai envelhece e vira filho dos filhos; já este Pai não envelhece nunca, não tem origem nem fim, é Ele a origem, é sempre Pai e nós sempre seus filhos. Não permite nem aceita troca de papeis. É sempre o Criador, e nós, passaritos como no ninho, sempre disponíveis para abrir a boquita…

Meu pai era mais de abençoar que de falar. Um dia falei com ele sobre cigarros; não mos proibia porque não tinha autoridade, mas partindo da sua experiência, também não mos recomendava. Que escolhesse livros. Preferi os livros e ainda hoje é estes que fumo.

Há quem diga que rezar é como falar com um amigo, e eu aceito. Mas O amigo é tão especial, tão senhor e criador – o único, aliás –, que eu prefiro chamar-lhe Pai, prefiro chamar-lhe Jesus e chamar-lhe Espírito Santo. É; não se fala igual com pessoas diferentes… E neste meu falar brotam palavras, tu cá, tu lá, brotam preces, crescem nós na garganta da alma, e noutras vezes dissolvem-se, digo-lhe como estou, se estou stressado, se calmo, se explosivo, impulsivo ou melancólico, e às vezes, ou muitas vezes, ingrato sou, e nem Lhe digo nada, de tão cansado e cabeça no ar ando. Falo-Lhe de planos e, por vezes, perscruto os que para mim tenha. E arrependo-me da minha impulsividade feroz, da minha teimosia que raramente me deixa ver claramente visto o que para Ele é tão claro. Diante Dele também choro, mas bebo as lágrimas para que não sejam mal-vistas. Imagino-O a meu lado (ou sinto-O?) ou sinto que salto para dentro do cenário em que Ele esteja. Espanto-me que caiba no sacrário, que ali fique preso, que ali se apouque, que tão poucos O visitem – ali ou nos doentes, para mim é sacramentalmente verdade. E penso. Não direi aqui tudo o que pense, porque penso nos santos antigos, nos que ninguém conhece, nos que só eu conheço, nos de hoje, espalhados pelas selvas, sejam de alcatrão ou de cobras. Enfim, penso nas cobras e nos anjos, e em tudo o que fica de permeio. Diante do sacrário, gosto de me pôr a pensar como quem está junto à fonte porque, assim pensando, voo sobre oceanos infindos.

Não sei se sei rezar. Admito que inteiramente não saiba. Não tenho autoestradas, tenho carreiros de montanha. E, sobretudo, o Espírito Santo. Sei, e este saber não é de saber-saber, mas de alguma experiência que vou tendo: que nunca sou tão livre como na oração. Sei que o importante ou o centro eu nunca o sou, mas Quem diante estou. Já me incomodou mais o silêncio, mas agora prefiro-o, inclusive, à música suave. Já fui mais dado às palavas, às letras, ao diário e até a fazer orações ou poemas. Agora, é mais ouvir. Já muito me incomodei com o tecto – se as orações ficavam lá a bater como os balões! –, agora sei que mesmo que o céu seja de bronze, Ele o fendeu de uma vez por todo o sempre! Posso não ouvi-l’O; aliás, não O oiço, já, porém, não concebo um Pai que não ouça um filho, lhe não enxugue as lágrimas, se negue a levá-lo pela mão e, quando necessário, ao colo sobre o abismo – logo de certeza Ele me ouve.

Orar não é simples, mas é mais simples para os sem arrimo e os simples. E para quantos têm a coragem e a humildade de Lhe dizer: – ensina-nos a rezar. Às vezes não rezo nada e fico-me como a outra – ao que contam a outra foi Santa Teresa – que não querendo fugir da oração ficou diante do Santíssimo a contar os tijolos da parede. (Eu é mais anjos…) Conta-se que um dia, perguntou ao Senhor:

– Qual foi a vez em que a minha oração mais te agradou?

– Aquela em que ficaste a contar tijolos, ripostou-lhe.

Às vezes, duvido desta estória, por uma simples razão: o que seduz e vence o coração de Deus não é a persistência, mas que O amemos, O estimemos, O prefiramos por cima de quanto exista. Mas uma coisa não nega a outra necessariamente. Outras vezes, como leio no Evangelho, a oração de petição também é insistir: e se, de facto, nunca ela muda a Deus segundo a nossa conveniência, porque Deus não muda nunca, então, se insistirmos, se precisarmos de insistir, é porque alguém precisa de mudar, nós! E então digo-me: porque pedes, João? Porque rezas como os pagãos e só pedes? Porque não adoras? Porque não te limitas a adorar? Porquê, pobre bichinho, tu não O reconheces como Pai que te ama, sabe o que precisas, o que verdadeiramente precisas, e não to nega jamais? Porquê? Porquê?…

Enfim, mérito algum em nós nos torna merecedores da salvação. Deus salvou-nos quando éramos pecadores, porque éramos tal, porque estava visto que só com nossas forças jamais venceríamos o pecado. Éramos pecadores e salvou-nos. Não foi porque fôssemos uns heróis bons, obedientes, capazes ou bonitos – como, pois não rezar, agradecendo-lhe? Amando-O? Reconhecendo-O? Louvando-O? Adorando-O? Aliás, se Deus preferisse os heróis tinha ido para Atenas ou Roma; mas aí jamais o crucificariam.

4. O inverno de 1980 deve ter sido muito rigoroso, já que recordo que derrubou a figueira grande que habitava junto ao nosso alpendre. Quando passou a borrasca alimpamos o que havia de alimpar-se e, no verão, já sem figueira nem raízes de figueira, eu e meu pai, erguemos o muro. A força tinha-a ele, eu a ajuda. Ele a sabedoria, eu a sede. As leis eram simples, disse-me. As pedras grandes ficam por baixo, as pequenas por cima. E as faces mais bonitas para fora. Agora parece-me óbvio. Erguido o muro numa semana, faltava matar as frinchas entre pedras – era trabalho meu, com o seu quê de preparo e jeito. Só um tolo é que não aprende a afiar uma pedra de matar. Aprendi. Porém, se o conceito é fácil, o realizar é mais complicado. Não servem umas pedras quaisquer, como ele me disse. E eu reconheci.

– Ai não?! Então porquê, perguntei inglório?

Porque duro com duro não faz bom muro, atiçou-me!

Ainda hoje disso me lembro. E agora que a luz dos olhos se me vai coando, aproveito para ver e vejo as pontes e as câmaras, os palácios e os ministérios, os templos e os mercados: nenhum muro ali se constrói só com pedra rija, que é mais bailadeira. Até pode que seja rija, firme e aguente muito peso e responsabilidade, mas se não é travada com pedra mole, daquela que se esmigalha, e esmigalhando-se, amacia e penetra para lá da aparência, e trava a dura, então esse muro não é inteiramente confiável.

À pedra mole não se lhe peça o ofício da dura, nem esta queira o da mole. Nenhuma se dispensa, é o que digo, que a cidade não se constrói só com a rija, só com a dura cerviz direita e firme, a que não sabe inclinar a cabeça nem dobrar o joelho nem calar diante da luz tremeluzente do sacrário.

Não quero cidade sem oração, nem oração só nos desertos e nos retiros. A oração é prática dos devotos e implicação com as pedras da calçada, das escolas, dos estádios, das fábricas, dos hospitais e das cadeias. Quem verdadeiramente reza não foge às dificuldades, antes atenta e abre-se aos problemas comuns. E encontra tempo para ajoelhar. E para trabalhar.

Não creio nem promovo oração que desligue do real, mas na que é fonte interior de coesão, decisão e compromisso, na que funda e oferece uma visão sustentada do eterno que não passa, mesmo que não seja visto à porta a saudar quem passa. Não sei se a crise civilizacional que sofremos é também uma crise de oração. Não me custaria a crer que sim. De há um par de séculos a esta parte só sabemos construir a cidade com a pedra dura da razão. Constrói-se para o já e o consumo rápido, deixámos de querer construir com os pés na terra, as mãos no maço e os olhos no céu, incorporando o transcendente entre aquilo que erguemos. Responsabilizando-o também por aquilo que erguemos.  E deixámos de saber preencher os vazios entre pedras, por já não queremos o divino como vizinho. E é assim que nenhuma construção puramente humana se mostra fiável, sustentável e segura.

Ai da cidade rija! Não restará pedra sobre pedra.