Frei João Costa, OCD

1.   Uma antiga e feliz tradição da nossa Ordem [do Carmo] recorda-nos que a Virgem Maria, São José e o Menino costumavam subir, em família, desde Nazaré até ao cimo da Montanha do Carmo, a fim de visitar, conversar e consolar os seus habitantes, herdeiros do profeta Elias e antepassados dos Carmelitas.

Estou muito convencido de que, por anos a fio, a presença da família de Nazaré foi muitíssimo apreciada por aqueles santos varões. Será bom lembrar que nenhum deles sabia inteiramente quem fosse aquela trindade terrena, isto é, que o Menino era Deus – o Deus tão desejado e anunciado pelos profetas! –, que a Virgem, era óbvio, a Mãe de Deus era, e que José o pai!

2. Aquelas visitas faziam bem aos herdeiros de Elias e, faziam bem também à família sagrada de Nazaré. Ora, se periodicamente uns subiam ao Carmo, e outros, os do Carmo, abriam as portas, os braços e o coração àquela trindade bem-aventurada, a razão era uma só: do mais novo ao mais velho, todos beneficiavam da visita, do encontro santo, dos abraços, da presença, do diálogo e da oração em comum.

A bendição era mútua.

Para que tenhas, leitor, leitora, melhor noção das linhas que percorro, repara só: eu jamais estou a ver a Virgem a confessar: – Olhai, eu sou a Mãe de Deus, que este meu filho vosso Deus é… Eu não estou a ver isso, não! A Virgem era recatada, e nem nos mais íntimos e profundos colóquios espirituais com o abade do lugar, e muito menos nas redes sociais de ao tempo – o lavadoiro! –, se punha a publicar isso. E o calado José também não. Antes levava duas ou três ferramentas essenciais, e sempre um mascoto, e compunha uma porta aqui, um banco acolá, um algeroz além, e fabricava mais uma escudela que desse jeito à comunidade. E ficava cumprida a sua missão, entre silêncios e invocações ao Senhor Jahvé. E o Menino? Oh, meu Deus, o Menino era um menino como os outros: ora brincava com as formigas, ora beijava pardalitos para logo os soltar, ora corria de bracitos no ar atrás das borboletas, ora se emocionava com os pirilampos, ora dormia no santo regaço da Mãe.

As visitas ao Carmo foram frequentes – mais que uma por ano, quero crer! –, pelo menos até à morte de José. Sim, foi também na solidão do Carmo que Jesus aprendeu a discernir o seu caminho, a sua missão – pois que não correu só atrás de borboletas, não. Aliás, jamais a Virgem deixou de ali subir, até mesmo enquanto Ele se deu a percorrer os caminhos da Palestina para anunciar o Reino de Deus.

Aliás, ao longo da sua juventude, tudo o que o filho dizia e fazia era novo para a Virgem e ela ia discerni-lo ali, na solidão da Montanha do Carmo! E é por isso que também temos por certo que foi ela quem, luminosa e iluminada, depois do Pentecostes, tudo foi contar aos seus amigos do Carmo, e os fez abraçar o Evangelho de Jesus. E recolhendo as emocionadas palavras da Virgem, logo eles anunciaram por toda a parte as Palavras de Jesus, e a todos O ensinaram a amar e a seguir.

Ah, o Pentecostes…

Mas até chegar ao Pentecostes, muita água correu pelos arroios do Carmelo e pelos ribeiros da Galileia. Muitas vezes, muitos dias, as mãos de Maria lavaram o Menino, lhe enxugaram o corpinho e a cara, e lhe pentearam o cabelo. Muitas vezes, muitos dias, preparou umas lentilhas para José, e umas papas de milho para o catraio. Muitas vezes, muitos dias, as mãos de Maria brincaram com o Menino, e fizeram por se enganar, para que sempre ganhasse Deus! Muitas vezes, muitos dias, as mãos de Maria se achegaram por detrás e lhe taparam os olhos, e ele, que também era Deus, sempre descobria que aquelas eram as mãos da mãe! Muitas vezes, muitos dias, as mãos de Maria deram glória a Deus, e enquanto pespontavam um caturno, simultaneamente, liberava ela, pela sua oração, uma montanha de pecadores! Muitas vezes, muitos dias, as mãos de Maria atravessaram as nuvens até chegarem a acariciar o rosto do Pai e depois baixavam e secavam lágrimas e rostos de pobres!

3. Pela volta dos doze o Menino estava feito um homem. Nessa Páscoa foram ambos os três e regressaram os três ambos. Segundo parece, vinham iguais, mas não inteiramente iguais. Como veremos. Por mais de uma vez, José e Maria haviam-lhe explicado que Jerusalém era maior que Nazaré umas duzentas vezes. Falaram-lhe do templo e dos seus rituais. E Jesus escutava como se nada soubesse. Ao se achegarem a Jerusalém, verificaram que cidade misturava o religioso com o profano, o comércio com especulação e a fraude. À chegada, antes de tudo, foram ao templo. Maria entrou e ficou-se pelo átrio das mulheres, a rezar em autêntica oferenda: Aquela que trouxera Deus ao mundo, e no-lo dera em Belém, agora, em Jerusalém, oferecia o seu menino a Deus, como Salvador de todos os homens e mulheres! E Deus aceitou a sua oração e a sua oferta! E por fim, depois da festa, houve uma tarde em que Maria e José se perderam de Deus, que no templo ficara por decisão inteiramente própria, e ali O voltaram a encontrar respondendo às perguntas dos severos doutores da Lei!

4. Por fim, Deus, a Mãe de Deus e José regressaram ao casebre de Nazaré, e ali, sujeito a eles, foi Ele crescendo como homem, em estatura e em graça! Sempre sem o dizer a alguém, Maria continuava a ser Mãe de Deus e Rainha dos Anjos, passajando roupa, buscando água à fonte, cozinhando e varrendo a casa. E servindo a Deus com suas mãos, com todo o seu coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento. Tudo, tudo, tudo para O louvar, O bendizer, O adorar ali presente em casa, guardando tudo que era Dele, no seu coração de mãe!

Por trinta anos a mulher do carpinteiro tratou de ocultar às suas amigas ser a Mãe de Deus e Rainha dos céus e da terra! Trinta anos sem dizer nada, ela que beijava a Deus antes de Ele dormir, que rezava a Deus ali dormido do outro lado da cortina, comendo da sua sopa de cebola, rindo das coisas simples da vida familiar, e martelando, por vezes, os dedos, e soltando um… «por trinta camelos e nove coros de anjos!».

5. Um dia Jesus saiu de casa para anunciar o Evangelho. A mãe fez-lhe a mochila sem uma palavra nem uma lágrima, visto que há anos sabia que um dia o filho se iria. E quando o filho se lhe foi, os ruídos da casa eram os de sempre, mas faltava-lhe Jesus. E não, ela não O travou nem impediu, mas deu-se conta que ficava na solidão e que agora teria de rezar de outra maneira. Enfim, a oração solitária de Maria começou muito mais cedo que Sexta-feira Santa e durou muito mais tempo – e sim, como sofria ela a ausência de Jesus!

Passados meses de ausência, Jesus encontrou a mãe em Caná, num casamento. Maria estava ali para servir e fazer felizes os noivos; para lavar pratos e servir em tudo o mais que fosse necessário. Estava ali para se dar conta de que se o vinho começa a faltar, seis imensas talhas de água fria não ajudam nada à festa! Estava ali, enfim, para interceder pela alegria noivos junto do coração de Jesus – «eles não têm vinho», disse-lhe na altura certa…

E no fim da festa que durou oito dias, Maria volveu à casa pequenina de Nazaré que, sem Jesus, lhe parecia enorme como o templo de Jerusalém, onde um dia o perdera… E olhava de roda e via no mesmo prego de sempre o mesmo serrote de José, e no mesmo canto da casa a mesma cadeira de Jesus… E a esta hora uma coisa há, que é muito para espantar: a seu tempo, Jesus assegurara à mãe que lhe concederia a vida eterna, mas nem por um momento decidiu fazer-lhe um pequeno baú e deixar-lho cheio de moedas para que ela sobrevivesse quando sem ele! Não, a mãe só, a mãe da oração e da solidão, se quis comer, teve de trabalhar, ou como se diz em alguns lugares: teve de ir rezando e com o maço dando

Um dia Jesus regressou a Nazaré; e quem encontrou à porta da casa? – A mãe! A mãe que logo o abraçou e lhe lavou os pés e, depois, apressada, tirou do armário que José um dia lhe fizera a melhor malga de madeira, para lhe servir um caldinho consolador, como só ela lhe sabia fazer! E enquanto Ele comia, ela, de colher no ar, mirava-lhe a cabeça, o cabelo lindo, a linha das sobrancelhas, os lábios, a pele tisnada pelo sol, o corpo emagrecido. Andava descuidado e maltratado o seu Jesus…

O outro dia era sábado e Jesus foi à sinagoga; a mãe, não. Curiosa ela não era e, naquela hora, mais houve de dar-se ao recato. Aconteceu, pouco depois, que três mulheres lhe correram para a porta a fim de avisá-la que os homens da sinagoga, tanto parentes como conhecidos, tinham decido matar-lhe o filho, atirando-o por um despenhadeiro abaixo! Saindo logo ao terreiro, dali, impotente, assistiu à cena: a turbamulta empurrava o seu Jesus com murros, ameaças e impropérios. E o doce coração da mãe, em tumulto, batia forte, fortemente; e ali, naquele momento de aflição, ela não soube o que rezar! Chegados, porém, ao despenhadeiro, sem esforço, Jesus como que abriu caminho por entre a impenitente testosterona do gentio barbado, e sem se virar, nem se despedir de alguém, seguiu o caminho do mar e não mais voltou!

6. E Maria continuou só, de porta aberta para quem quisesse entrar! Virão muitos meninos aprender dela a catequese e a oração, a ouvi-la falar de falas de anjos, da bondade e da misericórdia de Deus, de Jahvé, do Pai, de eternidade, da aliança, da fé e confiança em Deus. Mas sem nunca, nunca, revelar que o seu filho era Deus!

Dali a nada Sexta-feira Santa foi. Dali a nada, ela que tivera o menino Jesus nos braços, recebeu no seu regaço a Cristo morto! E as mãos de Maria que sempre O tinham servido e cuidado, trataram de Lhe limpar o rosto sujo, as macerações, o corpo frio e cheio de contusões, rasgões e borbotos de sangue…

Eis de novo a Mãe só, ela que aprendera a viver só, para que tivéssemos a Deus por inteiro! Eis a Mãe sem palavras, a Mãe sem orações, a Mãe sem voz, a Mãe das lágrimas, com o seu filho amado, com o seu Deus adorado no colo; jazendo-lhe morto! E a Mãe não tem ali outra oração, outro ui nem ai, senão a de estar só… só com o corpo morto de Jesus, junto à cruz! Só. Só ela só e Jesus, e uma réstea de esperança! Só ela só e aquele calado peito que ela tantas vezes beijara. E aquelas formosas mãos que ela lavou, aquelas mãos benditas que multiplicaram pães e peixes, que trabalharam e curaram tanta gente. Ai, aquelas mãos que na Noite Santa tinham abençoado o pão e o vinho e no-los deram como seu Corpo e Sangue verdadeiros! Ela as viu. E ela as beijou. E agora restava só, ela só, com a esperança de que… de que passados três dias…

Ah, como é difícil para ti, Maria, alimentares a oração em tal noite escura, apenas com o pequenino pão ázimo da esperança! Como foi difícil acompanhares o teu filho à sepultura e ver que Pedro fugira, te abandonara, O abandonara. E todos os demais por igual. Como foi difícil regressares à sala de cima do Cenáculo onde, assustados, macambúzios e culposos, se haviam refugiado os discípulos do teu filho! Com encará-los sem lhes querer mal? – Rezando, rezando e perdoando-os, e confiando que as horas passariam, e em passando, trariam risos e cânticos de aleluia, saltaricanços e abraços! E ali, no breu, andavas tu, por lá andarilhavas tu, noite e dia, limpando, asseando e rezando no segredo e na esperança do teu coração, confortando-os com o teu sorriso esperante, com a tua oração confiante – até que os três dias passaram!

E tu que não tinhas sorrisos para sorrir, não sorrias, mas confiavas, acreditavas e esperavas pela Páscoa. Tu só tu, nunca Pedro, nem Madalena, nem os de Emaús. Por fim, ao terceiro dia não foram eles quem te saudaram e te desejaram uma Páscoa feliz, mas foste tu que na força da tua oração, da tua união a Jesus, os foste convencendo que a Páscoa estava a acontecer, a rebentar, a florir, que Jesus tinha ressuscitado e que, depois Dele, também nós ressuscitaríamos!

E depois, antes que Jesus subisse ao céu, tu que sempre serviste, serviste ainda uma última refeição, feita de amor e carinho. Em pós a refeição Ele deu graças, despediu-se de todos e subiu, abençoando. Então, atónitos, torpes e atontados, os Apóstolos ficaram a olhar para a nuvem, até que os chamaste à razão, e assumindo-os como filhos queridos, tal como para ti sempre fora Jesus, com eles rezastes, como rezaste com Jesus, e os ajudastes com preces, salmos e cânticos a aguardar a descida do Espírito Santo!

E como sempre fizeras, apenas cumprias o teu dever; e com a luz da tua oração rasgavas caminhos no horizonte da Igreja!