Frei João Costa, OCD

I. O anjo da flauta

Em dia da Senhora do Carmo, começado luminoso e quente, celebrava eu, pelas 09:00, no seu altar. O povo tinha o olhar preso nas mãos da Mãe, e os que lá não estavam para lá os ia atirando eu. Aliás, como sempre me faço, quando à sua presença vou, mas, sobretudo, quando de lá saio, num mirar-lhe, demorado, o escapulário, aproveitando para lho pedir de empréstimo para as lidas que o dia trouxer.
Celebrando com muito mais do que o acostumado ajuntamento de povo, prévio me revestira de sentimentos e louvores achados na arca velha de meu coração, visto que nenhum outro olhar como o da Mãe me enternece.
Aviso atempado recebera da cantora de turno das dificuldades que o salmo do dia impunha. Que no bornal outro havia, mas não daquela liturgia, avisou. Pelas almas de quem lá tem, pedi, quanta voz nela ainda morasse, com ela nos elevasse para o doce colo virginal, certo estar de que, com nuvem ou sem ela, pronto ela se abaixaria para nos amparar e alçar. – Sei, aliás, de há anos que, tal voz, já não condiz com a alma que, cantando com toda, mais e mais se lhe aveluda quanto mais a voz se lhe mirra –. Apenas uma coisa se me dava: que cantasse com alma, minguada lhe fosse a voz.
Seja qual seja a solene liturgia de hebdomadário dia, sempre aqui se canta sem acompanhamento musical. Por isso quase pulei no início do bendito salmo, ao sentir, subindo igreja acima, uns sons de flauta. Eram amáveis e achegavam-se-me das entranhas dos tempos para nos lavar. Confesso-me: não ouvi o salmo, que não sei para onde me refugiei ou fui transportado. Cri-me ou vi-me, não sei, lá para oitocentos anos atrás, num terreiro de uma montanha, com barbados e curtidos homens, em volta de uma fogueira acendida na frontaria de uma igrejinha velha. Se a flauta era de saltimbanco ou de trovador de tal longínquo horizonte chegado não sei nem jamais soube. – Nem sei dizer como acabei a Missa, que mais disse, como disse, ou o que por dizer ficasse. A comunhão devo ter dado, que ninguém ma veio reclamar –.
Bem de compreender é que dei a bênção final ao ritmo da flauta e, incréu que sou, logo fui apalpar com o olhar que anjo andarilho aterrara por aqui em dia da Mãe do Carmo e do Carmelo. Se anjo fora, não soube nem ainda sei. Apenas por ali vi um cachorro e uma debotada mochila com a bandeira da Inglaterra, e umas moedas numa lata. Faz sentido, todo o profeta merece comer do seu trabalho.

II. José, simplesmente José

Dias há em que, de quando em quando, me cabem idênticos movimentos aos de certo sacerdote de Silo. Quando tal acontece vou e venho sem mirar caras ou almas. Hoje, de uma, outra e outra vez, vi José – só no fim é que soube ser assim chamado – atento e recolhido em paz, em silêncio, em oração. Às seis já ali não estava, mas às seis e meia, sim. Voltara, portanto. À hora certa chegou a restante comunidade o que, logo após, devotos, recitámos as Vésperas da Solenidade da Mãe do Carmo.
Ao contrário de outros noutras Horas, José ficou no lugar – o mais oposto ao meu. Rezávamos o Comum de Nossa Senhora e, a espaços, senti que fazia coro comigo. Deduzi-o fiel à Liturgia das Horas, mas que não realizara acerto com a certa. No fim, a comunidade sempre fica em oração silenciosa. Mas não hoje. José erguera-se ou, melhor, levantaram-no as asas de um sorriso, e cumprimentou um a um os membros da comunidade. Ao se me achegar vi-o moreno e já curtido pela idade. Fiz-lhe sinal para que se sentasse e questionei-lhe que brisa o trouxera. Não posso identificá-lo pelo apelido nem pela função há pouco assumida. Mas posso dizer a forma apressada e delicada com que se despediu: Hoje é dia a Mãe e eu tinha de passar o dia com a Mãe. Afinal sou dela. Foi um dia delicioso. Só daqui saí para ir à missa à Sé; mas como sei que a porta do Carmo sempre está aberta, voltei; ainda tinha umas coisas a dizer-lhe, mas, sobretudo, ainda precisava de a ouvir!


III. Virgem Imperfeita

Um título assim é um atrevido atrevimento; mais se ele apostrofa a Virgem Maria. Não é inteiramente meu, mesmo que nele haja um leve tresmalhe de um texto do Pe. Miguel Maria. Sucedeu que, por ocasião da solenidade da Mãe do Carmo de 2022, o Prepósito Geral escreveu uma carta a toda a Ordem, onde aponta para um ícone que se encontra à porta de um oratório de certo convento por ele tão amado. O ícone é de Maria. E está inacabado. Inacabado é imperfeito, digo eu em meu tresmalhe. Mas não julgo incorrer em heresias chamando-lhe Virgem Imperfeita que, se algo é imperfeito, é o ícone. E as palavras minhas.
A carta li-a no dia 15, depois que mão solícita ma achegou ao princípio da noite. Nela me tocou a nota do inacabado, da imperfeição. E que a vida de cada ser humano é um tender sempre para mais além, mais um passo, mais um degrau, um degrau acima, um centímetro além, um voo mais alto, um pique mais profundo, um repique mais suavemente sonoro. Enfim, nós, e a graça de Deus connosco, somos sempre para ir mais além, mais longe, mais longe, mais longe. Mais.
Alargar horizontes é o que nos cabe como jubilosa tarefa, não como dura pena ou degredado castigo. Também não é um círculo nem uma montanha russa; é um voo de bico em riste. E não é tarefa que termine, nem mesmo quando termina; é um sempre volver à acção ou, sobretudo, à in-acção; digo melhor, a um deixar Deus fazer o que por Ele iniciado já está em nós e, depois, com Ele melhor tem de ser feito.
Aceito o repto do Pe. Miguel Maria: pareça-me eu melhor a Maria que, afinal, filho dela sou; e visto que dela sou, jamais a outra me pareça.
Pareçamo-nos a Maria; mais e mais nos pareçamos a ela, que os filhos ou tiram à mãe, ou enteados são. Pareçamo-nos mais a quem mais temos de nos parecer – à Virgem do perfeito amor –, e complete-se, através de nós, e também em nós, a sua imagem, o seu rosto inacabado de Mulher, de Mãe e de Virgem.
Aqui estou, Senhor.
Faz de meu barro o que quiseres,
contanto que em mim se complete
a beleza inacabada da Mãe,
mesmo que minha fé e meu amor
não passem de um greiro.
– Que não passam –.
Toma o meu greiro,
que não é belo nem feio.
Aceita-o. Querou dar-lho,
na esperança de que a seu coração fiel
eu não falhe,
e mais e mais, o seu rosto ilumine
o mundo.
Amen.

E um apontamento

Rolam na net uns vídeos que me maravilham. Não é que seja adicto, mas gosto de os ver. São de meninos, meninos travessos, ainda que inconscientemente travessos, perceba-se. Quem me lê certamente já os viu. Ah, melhor, quem é que em seus dias, se escusou de ser travesso? Quem nunca foi ao tarro do açúcar surripiar um tarolo? Quem nunca pisou o risco ou ficou à beira do abismo?
Pois, o que lhes quero dizer é que por aí existem uns vídeos que são de ir às lágrimas. São inocentes e, em geral, imagina-se, gravados pelos papás. Babados, é claro. São travessuras inocentes, do mais estapafúrdio que existir possa, e alguns deles a sair para o carote à família.
Explico-me: o último que vi era de artista. – Geralmente eles são de pendor artístico, porque pintores e poetas, somo-lo todos até aos dezoito! –. O último, portanto, em pouco mais de meio minuto, mostrava-me o lindo serviço de um garoto de uns dois ou três anitos: uma casa de banho pintada a la Picasso. Imagine Você que – imagine quem possa, mas era melhor ter visto! –, servindo-se duma caneta de grosso risco vermelho, tudo, tudo, tudo à altura do miúdo, e também o chão e a loiça sanitária, por dentro e por fora, fora sarrabiscado a vermelho! Eu ri-me, claro, porque o pintor nem a si se poupara, antes, despreocupado, embelezava roupa, mãos e pés, braços e rostinho! O que eu me rio com estas pantominas! Alguns pais, choram de desespero, de júbilo, outros; o que se compreende. – Eu nem imagino o quanto possam custar certas recuperações, nem o tempo de limpeza que tal possa exigir! Enfim, ao que quero chegar: quem pode imaginar as tropelias que uma criança abandonada a si mesma possa fazer? –. Por isso, com uma certa obviedade, neste dia da Senhora do Carmo, dei comigo a pensar na segurança e no aconchego do seu escapulário. E pedi-lhe:
Leva-nos, Mãe, pela mão
e jamais de nós te distraias,
ou viramos pantomineiros ferozes.
Tem-nos sempre sob teu manso olhar,
ou ninguém pode dizer
aonde possa ir parar.
O teu coração imaculado
nos seduza e atraia
ou, todos e tudo,
sarapintaremos à nossa volta.
Ámen.


E mais três notas a fechar

A Senhora Maria é fiel de todos os dias. Menos naqueles em que vai para os filhos que traz esparzidos por mundo e meio. Qualquer coisa como meio ano cá, meio ano por onde Deus ou a prole a reclamam. Não é de espalhafatos nem de espaventos; simplesmente voa para onde seja preciso um coração de mãe e avó. E aqui ou ali, fica, discreta e assertiva, no seu cantinho. Sempre a saúdo nem que seja com o olhar. Hoje, uns três meses depois, dei-lhe um abraço.
– A Festa da Senhora do Carmo cando é?
– Ora, Maria…
– Não é isso! Cando é que vocês dão o escapulário?
– Já demos; então! Foi na festa dela!
– E cando tornam a dar?
Desconfiado:
– Que se passa?
Então, tomando-me as mãos nos calos das suas, chora-me:
– Senhor Padre, o meu filho está mal. Tem três filhos e cinco netinhos. Apareceu-lhe uma coisinha má na cabeça. Queria mandar-lhe um escapulário para a Bélgica.
– Mas, o escap…
– Ele não vai à Missa, sabe. Mas é meu filho. E acardito que também é da Senhora do Carmo. Iria ela abandoná-lo na hora que mais precisa? Que mãe deixaria o filho por cobrir na hora mais fria?

Poucos dias depois da festa, os militares da Brigada de Trânsito vieram aqui rezar pelos colegas falecidos. No fim da Missa cumprimento-os. Reafirmo-lhes que Nossa Senhora do Carmo é também sua Padroeira:
– Nós sabemos, Senhor Padre; porque julga que é aqui que gostamos de rezar pelos nossos guerreiros caídos?
– Pois; aqui estamos todos em boas mãos, de facto…
– E sabe uma coisa: até ao ano de 1982, no dia da incorporação, era-nos oferecida uma imagenzinha da nossa Padroeira. Mas agora deixaram-se disso…
– Então?!
– Entraram militares de outras religiões, outros são agnósticos; sabe como é…
– Ok. Isto fica aqui entre nós: a Senhora do Carmo abençoa-vos a todos; e quer que todos sejais bons, bons profissionais em favor da lei e da grei, e que sejais santos ou não mereceis ser filhos e filhas dela. Pode ser?
Com os olhos húmidos, responde o mais velho:
– Obrigado, Senhor Padre! Olhe, todos nós precisamos de ouvir coisas assim. É que nós não somos daqui, nenhum é só daqui. E o mais importante da vida é ajudar os outros a seguir, seguros, o seu caminho!

Não vejo a Isabel há para mais de meio ano. Ou bem mais. Não estranho porque lhe sei o marido gravemente enfermo. Vi-a hoje à hora da comunhão. Vinha a chorar. – Fala ela mais com lágrimas que com palavras –. Apeteceu-me dar-lhe um abraço, mas em vez dei-lhe Pão dos Anjos. Bem falta lhe há-de fazer. No fim veio à sacristia desfiar-me os dolorosos do rosário, enquanto dos olhos lhe esbarroncavam dois ribeiros. O seu rosário são mais que muitíssimos mistérios carregados montanha acima montanha abaixo. As lágrimas lavam-me a alma, garante-me. As suas, a mim também, afianço-lhe. E de seguida garante-me ainda que a cruz é um mistério feliz. Pura doçura, pura graça. A cruz é por ora a doença oncológica do marido, a inexplicável doença da filha, a doença do genro, o chumbo escolar da neta, a covide que a todos caçou, a vida virada do avesso. Como não sabia como parar aqueles ribeiros nasceu-me um ímpeto de fugir dali, mas aguentei firme; afinal, não poucas vezes ouvi dizer – e vi – que a cruz mais nos ampara que nos derruba. E restei de atalaia, no escuro. No fim daquele chuveiro de lágrimas de luz – são de luz, garanto-vos – dou-lhe um abraço, que nada mais tenho para dar-lhe. Nada, lamento-lhe; mas eis que o olhar se me descai para a mesinha da sacristia e vejo um escapulário que sei não estar ali há mais de dois segundos – donde veio não sei, garanto-me; só sei que antes ali não estava nem esteve –. E dou-lho. É para a sua filha, que também é mãe, digo.
– Posso-lhe dizer que vai da parte da Mãe.
E eu que não posso dizer-lhe que bem acho que dela vem, contesto:
– Se não é a Mãe, quem lho mandaria?