Armindo Vaz, OCD

Acontecimento que passa ao lado de Portugal. Muito notado, por exemplo, nos EUA! É a Representação da Paixão de Jesus na pitoresca aldeia de Oberammergau, no sul da Baviera, a 90km de Munique. Entalada entre montanhas na paisagem de sonho dos Alpes alemães e protegida pelo símbolo da cruz, a aldeia de 5000 habitantes envolve mais de 2000 (actores, músicos, técnicos…, todos residentes na aldeia) na produção da representação pela qual é célebre em todo o mundo. A encenação da peça dramática é que marca o ritmo da vida da comunidade.

Tudo começou em 1633. No turbilhão tenebroso da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), a peste grassava por muitas regiões da Baviera. Em Oberammergau 81 pessoas morreram vítimas da epidemia, metade da população da aldeia. O Conselho da Comunidade reuniu-se e fez o voto solene de pôr em cena o drama religioso da Paixão de Jesus cada dez anos. A confiança do povo no poder salvador de Deus não ficou desapontada: “Daquele dia em diante não morreu mais nenhuma pessoa” pela peste – rezam as crónicas da aldeia. Foi o começo de uma tradição mantida quase 400 anos. A primeira representação em cumprimento do voto foi em 1634 e anualmente até 1674. Desde 1680 aconteceu em décadas redondas, excepto em 1770 (proibida pelo duque da Baviera) e em 1940, por causa da II Guerra Mundial (por razões várias, sete vezes foi feita no meio da década). A última encenação deveria ter acontecido em 2020. Por causa da pandemia, foi adiada. Está a acontecer agora, de 14 de Maio a 2 de Outubro de 2022, 103 representações na totalidade, 5000 assistentes em cada representação, que será vista por mais de 500.000 pessoas.

O que a aldeia faz cada dez anos não quer ser espectáculo lucrativo. De facto, quando soa o último acorde e a última palavra da recitação, os actores retiram-se e a assistência aplaude arrebatada, esperando que reapareçam para serem ovacionados; mas não reaparecem, dando a entender que o representado é antes uma meditação sobre o sentido da vida e da morte, de Jesus e da humanidade. Cada representação decenal devolve à aldeia a sabedoria feita de interioridade para pensar a sua existência. Transporta a força de um acontecimento fundador, do passado para o presente das novas gerações, para orientar a sua vida. Simultaneamente faz memória de dois acontecimentos, fundindo a relação de um com o outro: acredita e sugere que o mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus, deu sentido salvífico à vida e à morte dos seus antepassados de há quatro séculos e deve salvar também «a circunstância» em que a aldeia vive hoje. A aldeia tornou o evangelho consciência e suprema realização da sua vida. Percebeu que o evangelho tem riquezas a (re)descobrir e virtualidades inspiradoras dos jovens. Percebeu que a mensagem pregada do alto da Cruz fecunda a vida de dimensão transcendental e enriquece o espírito humano. Percebeu que quem guarda a memória do passado se torna mais digno do presente e do futuro; e que, sem o refrescar periódico do passado fundador, o presente e o futuro ficariam sem suporte. Percebeu que a história da paixão e morte de Jesus, incluindo a sua vida e a sua palavra, é um clássico, significativo para a cultura e estruturante da vida. Por isso, o texto dramático, musical e coral não se limita a narrar os episódios da Paixão. Põe na boca dos vários intervenientes ideias e frases abundantes de todo o evangelho, fazendo uma síntese da boa nova de Jesus. Esta, por sua vez e em linha com a melhor tradição monástica medieval, é cruzada e entretecida –através do sublime canto do coro e dos solistas – com grandes temas e acontecimentos do Antigo Testamento.

Os sucessivos autores do libreto têm-no actualizado, também para a encenação de 2022. E está destinado a evoluir. Por exemplo, Maria Madalena aparece como “uma prostituta”, de quem Jesus diz: “os seus pecados são-lhe perdoados porque mostrou muito amor”. Como na tradição cristã em geral, é aqui claramente confundida com “uma mulher pecadora na cidade”, a quem Jesus perdoa os pecados (Lc 7,36-50). A confusão deve-se ao facto de Marcos (16,9) e Lucas (8,2) a apresentarem como aquela “da qual [Jesus] tinha expulsado sete demónios” e “da qual tinham saído sete demónios”. Mas isto só significa que ela era muito doente, não contendo o demónio nenhuma conotação com o pecado ou com o maligno (associado ao diabo). Outra passagem que poderá melhorar é o olhar retrospectivo para “a expulsão do paraíso”, logo no pórtico de entrada da Representação. A narrativa da criação em Gn 2-3 é entendida à maneira tradicional, segundo a qual «Adão e Eva» teriam cometido o pecado original e, assim, deitado a perder a vida feliz da humanidade. A poderosa voz do baixo-solo entoa, para os presentes, afogado em aflição: “A Humanidade desanima, desalentada na fadiga e na dor; e tem saudades do tempo em que o anjo a expulsou do paraíso e a condenou ao desterro. A Humanidade foi desterrada das campinas do Éden, ofuscada na loucura e nas trevas da morte. Foi-vos proibido comer da árvore da vida… Todavia, à distância, das alturas do Calvário, brilha na noite um resplendor matinal; dos ramos da árvore da cruz sopram por toda a terra ventos de paz”. Entrada avassaladora e deslumbrante! Mas a exegese bíblica hoje percebe que o sentido dessa narração de criação foge do pessimismo e do fatalismo: é totalmente positivo. Ela quer sublimar as realidades da vida humana, tanto as agradáveis («o bem») como as penosas («o mal»), contemplando-as como criadas por Deus.

Talvez Oberammergau tenha intuído que o projecto de Jesus para a humanidade não foi compreendido em pleno. E quis contribuir para o seu aprofundamento. O voto-promessa não foi regateio com Deus. Foi um acto de fé no Seu amor para com os atribulados, manifestado em Jesus. A teimosa reposição decenal de A Paixão quer cantar uma história de esperança e redenção para o mundo. E é manifestação de agradecimento pela salvação sentida.