Frei João Costa, OCD

  1. Um domingo antes do Bom Pastor vejo-me à porta a pensar; logo, ao cair do sol, estarei de mãos ao alto a rezar. Penso e rezo o ardor de quem vai, a grandeza de quem fica. Nisto, porém, das vocações não acredito só em quem corre, não abençoo só quem alevanta as mãos ao alto.
    No domingo do Bom Pastor, junto haverei de cantar que no amparo da sombra do seu cajado «nada nos falta». E não.
    Na aproximação ao início desta jornada de oração, inesperado me caiu no coração um relâmpago do tamanho de uma pergunta: «Para quem sou eu?». Li-a num pequenino texto de D. Vitorino Soares que antes a lera no n.º 286 da Exortação Apostólica Cristo Vive. E conclui o Papa, e conclui o Bispo, que quem apenas se fica pela pergunta «Quem sou eu?» esse murcha e fica só, mas quem se pergunta «Para quem sou eu?», esse ou essa, jamais se isola, antes rasga e alarga o coração, e mais e mais o reverdece, mais abre as mãos, mais dá. E assim jamais caminha só, porque o pão partido e repartido é força para o caminho comum. E por ali mais se recebe.
  2. Para quem sou eu?
    Eu, ou tu, sou para Deus.
    De Deus vim, vimos, para Deus vou, vamos – tenho-o por certo. O que fica pelo meio é espaço de peregrinação. Por aí vou, não sem dores, não sem estranhezas, não sem dúvidas; às vezes, caindo. Às vezes, apenas tropeçando. Nem sempre fácil de ser convencido a erguer-me. Nunca inteiramente derrotado.
    Não sou super-homem, nem super-mulher. Não sou um jovem superidealista; talvez mais bem quase vencido, mas ainda assim questionador e intuitivo.
    Dia e noite perscruto o caminho de Jesus; aliás, perscruto o coração rasgado de Jesus, que se oferece como caminho. Mas nem sempre vejo as pegadas dos Seus pés, eu que calço botas. Ele ofereceu a sua vida pelo Reino; e eu que cuido menos de servir que reinar, tenho dificuldade em ver como Ele vê, de falar como Ele fala; de pensar como Ele pensa – de servir, não ser servido é desafio.
    Haja sol ou chuva, oposição ou indiferença, eu sou, tu és, portanto, para Deus. Há décadas que lembro e canto, aliás, o que há 500 anos cantava nossa madre Santa Teresa: «Vossa sou, para Vós nasci que quereis fazer de mim?». Para quem mais haveríamos de ser, pois?
  3. Para quem sou eu?
    Eu, ou tu, sou para Deus. E em Deus sou, és, para os outros. Deus só me quer se puder dar-me, distribuir-me, repartir-me, como quem dá uma lasca de pão: não mata a fome, mas já andas caminho até outro celeiro!
    Quer-me fatiado, dado e repartido, inundado da alegria de quem transluz Evangelho.
    Quer-me para o amanhecer da esperança.
    E quando todos apenas me disserem: pensa em ti, descansa, defende-te, goza e pensa primeiro em ti, então, Ele quer-me, a mim e a ti, imersos, ajoelhados e afundados nas dores dos pequeninos da comunidade.
    Quer-me no Tabor, no escuro do Cenáculo, no não de Pedro, na luz trémula de Emaús, no nevoeiro do Lago durante a pesca nocturna, na página do Ide e Ensinai.
    Quer-me força de quem sai em missão, ou de quem ora de mãos ao alto, sustentando quem remando avança na barca em mar adentro.
  4. Para quem sou eu?
    Eu, ou tu, sou para Deus. E em Deus sou para quem Ele quer que sejamos.
    (Não é necessário que este eu, ou este tu, seja um clérigo – tão-só um baptizado, um pequenino.).
    Sim, todo o baptizado é para os outros que se apenas para si, não passa de espiga chocha ou de pão duro cheio de bolor que todos receiam molhar na água e comer.
    Sou, enfim, mancheia de ternas migalhas distribuídas às mãos famintas dos meninos que as dispersam, e logo cachorrinhos as lambem pelo chão escuro.
  5. Para quem sou eu?
    Sou para sair para a leira e cavar fundo, para virar a terra dura, para semear com esperança, para vigiar o lento despontar da plantinha, que cresça e se fortaleça debaixo do sol, para sachar, para regar e recolher.
    Não sou para arrecadar. Sou para malhar a espiga, para joeirar e separar a semente da casca.
    Sou para repartir o grão em sacos, como José.
    Sou para a moagem do grão, para o amassar da farinha e o cozer da massa com uma pisca de sal.
    Sou para ser fermento e brasa; fermento que leveda e agranda, brasa que aquece e prepara pão para a ceia.
    Sou pão para ser partido e repartido pelas mãos pequeninas dos meninos por cima da mesa.
  6. Para quem sou eu?
    Eu, ou tu, sou para Deus. E por Deus confiado aos cuidados dos outros.
  7. Para quem sou eu?
    Eu, ou tu, sou para Deus. E em Deus sou para quem Ele quer que sejamos.
    Sou para dar. Para sair. Para repartir.
    Sou para os órfãos e para as viúvas, reforço em suas duras penas, necessidades e tribulações.
    Sou para quem gosta de pão partilhado.
    Sou para quem tem mãos limpas ou, se sujas, mantém o coração em alerta, e bênção em seus lábios.
    Sou para os que passam frio, fome ou carecem de uma palavra e um beiral. Para os que precisam de tecto, de uma mesa de irmãos. De uma janela aberta.
    Sou as mãos de quem mãos não tem, olhos de quem olhos não tem, boca de quem traz um nó, pés de quem não alcança, a palavra de quem não tem voz.
    Sou irmão na solidão, companheiro em missão, levado pelo vento até onde ele quiser.
    Já menino não sou; e a bailar não aprendi. Companheiro, sim. Vou até ali, ou além, ou mais.
    Serei caminho, mas não o caminho.
    Serei verdade, mas não a verdade.
    Serei palavra, mas não a palavra inteira.
    Serei vida da tua vida, mas só ao modo de quem colhe maçãs para uma cesta e a deixa à beira do caminho.
    Serei cruz e crucificado, chaga aberta, sol por descobrir e passos por dar.
    Serei irmão, que um só não o é, à volta de uma mesa, onde também os netos se sentem e falem, instruindo os avós também.
    Serei ânimo, alento, sino que toca, fogo que alguém acende, lume novo, conversa quente, misericórdia.
    Sou Cristo, o que Cristo seria se cá andasse e te visse.