Armindo Vaz, OCD

Jesus é chamado expressamente rabbi e reconhecido como tal. A palavra até aparece traduzida do hebraico e do aramaico para o grego do Novo Testamento como didáskalos: mestre, professor. Didáskalos aparece 48 vezes e rabbi 18 vezes, só nos evangelhos. É uma faceta de Jesus pouco atendida. Ele, que não era sacerdote nem pertencia à tribo sacerdotal de Levi, aparece rodeado da aura de Mestre: “Os escribas sentaram-se na cátedra de Moisés…; querem que a gente os chame rabbi; vós, porém, não vos deixeis chamar rabbi, porque um só é o vosso Mestre [didáskalos]” (Mt 23,7-8). O pedagogo itinerante da Galileia, o dialéctico virtuoso da palavra apresenta-se como professor aos que se dispõem a escutá-lo. Juntando-se em Espírito aos dois discípulos de Emaús, aparece como autêntico Mestre. Primeiro tratou-os como alunos desatentos: “Ó homens sem inteligência e lentos de espírito para crer em tudo o que os profetas anunciaram!” Depois ensinou-os a interpretar os clássicos: “começando por Moisés e seguindo por todos os profetas, explicou-lhes [dierméneusen: fez-lhes hermenêutica] em todas as Escrituras tudo o que lhe dizia respeito” (Lc 24,25-27). Esse ensino fascinante seduziu-os: “fica connosco…” Cá está o ensino a elevar o nível das relações humanas e a gerar comunhão de pessoas, a gerar amor. A sedução inédita que sentiram pelo Mestre deu às suas sensações uma virgindade ardente, inviolável: “não nos ardia o coração quando ele nos falava pelo caminho e nos abria de par em par [diénoigen] as Escrituras?”

Ao contrário do grego Sócrates, o Mestre Galileu escolhe os seus discípulos: “Mestre, seguir-te-ei para qualquer parte que vás. Jesus acautelou-o: as raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. A outro disse: Segue-me. Ele respondeu: deixa-me primeiro enterrar o meu pai. Jesus retorquiu: deixa que os mortos enterrem os seus mortos” (Lc 9,57-60). Recruta-os com radicalismo. Mas não exclui ninguém. Tinha multidões de discípulos, que seguiam lealmente a sua instrução: “as multidões ficavam vivamente impressionadas com o seu ensino (didakhé), porque ele os ensinava (didáskon) como quem tem autoridade e não como os doutores da Lei” (Mt 7,29).

Habituados como estamos a ver Jesus como salvador, descuramos a influência que ele exerceu na formação da nossa mentalidade e cultura enquanto mestre da palavra, ele que era a Palavra. Mas o insuspeito judeu G. Steiner diz: “É virtualmente impossível compreender a evolução do intelecto ocidental, de Herder a Hegel, de Kierkegaard a Nietzsche…, sem as presenças inspiradoras de Sócrates e de Jesus” (As lições dos mestres [Gradiva; Lisboa 2005] 37). Os professores atentem nesta nota: quando os evangelhos declaram Jesus rabbi, proclamam-no Mestre, alguém que tem muito a ensinar: “aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). O que ele tem a ensinar está no Novo Testamento. As suas parábolas incarnam aquilo que é decisivo e inexplicável na arte de ensinar: a nossa relação com o reino de Deus, que nos transcende e completa.

Acima de tudo, Jesus ensina “come l’uom s’etterna”, como diria Dante (Divina Comédia, Inferno, XV, 85): “ensina como o homem se eterniza”, se imortaliza. O ser humano é, não só aquele que vive, mas também aquele que sobrevive. Afortunados os discípulos e os mestres cujo Mestre supremo deu sentido à morte: “Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim não morrerá para sempre” (Jo 11,25-26).

A fome do radical sentido da alma obriga o discípulo a regressar repetidamente aos mestres bíblicos fundadores, que para Dante seriam a “nostra maggior musa” (Divina Comédia, Paraíso, XV, 26). Relê-los como nossos contemporâneos, deixar-se cativar por eles é um acto de inspiração e de oxigenação da mente.

Mas o qualificativo Rabbi não é exclusivo de Jesus. O rabino Saulo era professor versado nas Sagradas Escrituras: autêntico biblista de hoje, sumo artista da palavra, formado na melhor escola de Sagrada Escritura de então, em Jerusalém, “aos pés de Gamaliel”, “doutor da Lei respeitado por todo o povo” (Act 22,3; 5,34). Sabemos como ele influenciou, mais do que qualquer escritor antigo, a literatura e os mestres do Ocidente.

Em linha com a revelação bíblica, S. Agostinho resume nos Sermões: «nós falamos; mas é Deus que ensina». Os mestres clássicos não faziam por menos: invocavam as musas transcendentes, as cantoras da alma, para inspirarem o seu dizer. No fundo assentava a ideia de que, apelando para o transcendente, superamos as nossas capacidades de sentir e dizer: abrindo-nos à inspiração divina, sentimos que somos mais do que aquilo que fazemos, que valemos mais do que aquilo que sabemos e sabemos mais do que aquilo que pensamos. Na Divina Comédia, Dante dizia que mio maestro último é a Divindade. É a intuição que já emerge de cada página da Bíblia. Os mestres que foram os profetas fazem remontar a Deus a mensagem que comunicam: «Deus disse a Moisés…», «o Senhor disse-me», «o Senhor disse a Jeremias». Assim, a palavra bíblica aparece como tōrá/instrução divina inspirada e inspiradora, suscitando atitudes de abertura, tanto rara quanto raros são os verdadeiros Mestres.