Armindo Vaz, OCD
O Natal é a festa que mais toca os sentimentos e as emoções humanas. Põe-nos a pensar numa mãe que concentra no filho toda a ternura do mundo, uma mãe que dá à luz um menino apresentado como filho de Deus, mas que não é posto num berço de ouro e é “reclinado numa manjedoura (praesepio, em latim)” (Lc 2,7), um menino que não aparece vestido de luz mas envolto em humildes panos. O menino que escolheu precisar em vez de exigir atrai-nos para a sua humanidade, tão desarmante que transparece divindade. Humanidade de Jesus, é o primeiro que o Natal contempla, amando também a carne em que ele assumiu a condição humana. O que foi indicado aos pastores – os primeiros a quem foi enviado “um mensageiro do Senhor”, eles, sim, “envoltos de luz” ultra-terrena – é muito humano: “Não tenhais medo! Anuncio-vos uma boa nova, que será grande alegria para todo o povo: nasceu-vos hoje na cidade de David um salvador, que é Cristo, Senhor. E isto será para vós o sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura” (Lc 2,10-12). E o verificado coincide com o anunciado: “Foram com pressa e encontraram Maria, José e o menino deitado na manjedoura” (v. 16). Ao fim notifica-se a surpresa. Viram o humano, contemplaram o divino: “Os pastores regressaram glorificando e louvando Deus [proclamando a sua existência] por tudo o que tinham ouvido e visto” (v. 20). A fé sugeriu-lhes que a mãe fez entrar a vida eterna do Filho de Deus na vida limitada do Filho do Homem, Jesus.
O mistério que envolvia o seu nascimento fez parar tudo no tempo. Os livros apócrifos que o relatam deixam-se surpreender pela meditação: “Naquela hora, tudo parou no máximo silêncio com temor reverencial. Os ventos deixaram de soprar. Não se movia uma folha das árvores, nem se ouvia o murmurar das águas. Os rios ficaram imóveis e o mar sem ondulação. Calaram-se todas as nascentes das águas e cessou o eco de vozes humanas. Reinava grande silêncio. Até o próprio pólo abandonou o seu vertiginoso curso. As medidas das horas já quase tinham passado. Todas as coisas se tinham abismado no silêncio, atemorizadas e estupefactas. Nós esperávamos a vinda de Deus das alturas, meta dos séculos” (Livro sobre a Infância do Salvador, 72). Com a metáfora do vagar e da paragem de qualquer movimento, o evangelho apócrifo tomava consciência da importância de tal acontecimento e de que Jesus era a paz e a causa de prosperidade para o universo; talvez sugeria que “os maiores acontecimentos… [se dão] nas horas do mais profundo silêncio” (F. NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra [Presença; Oeiras 2010] 156).
Esta nota do nascimento de Jesus fora de casa, na manjedoura de uma gruta, entrelaça-se com a da sua morte fora de casa, na cruz de uma colina. Aquele que no seu nascimento tinha sido “envolto em panos e reclinado numa manjedoura” de animais, na sua morte foi “envolto num lençol limpo e posto no sepulcro novo”, emprestado (Mt 27,59-60). Ele, que “foi posto à prova em tudo como nós, excepto no pecado” (Heb 4,15), partilhava assim com a humanidade de hoje os hábitos de nascer, não em casa, mas na maternidade, e de morrer, não em casa, mas no hospital. Mesmo em vida, “o Filho do Homem não teve onde reclinar a cabeça” (Lc 9,58).
O relato do Natal, que põe “uma multidão do exército celeste” a cantar “glória no céu a Deus e na terra felicidade salvífica entre os homens que Ele ama”, mostra os céus a abrirem-se definitivamente, ponto de chegada de uma longa procura da compreensão da vida pela fé: com Jesus, acreditar significa compreender, ver melhor. Acontece o maravilhoso radical, revelador: o menino anunciado por mensageiros celestes, adorado pelos humildes pastores da terra e apresentado pela mãe, vem mesmo de Deus. Assim, o menino liga Deus à história dos homens. O Natal de Jesus, cujo mistério cobre toda a sua vida terrena, dá o último toque à imagem de Deus: mostra que “Aquele que é” (Ex 3,14) é ‘Deus para nós’, imanente sem deixar de ser transcendente, não distante de nós mas “Deus connosco”. Deus em si continuou com a mesma identidade. Mas o Natal de Jesus revelou definitivamente o que o povo bíblico já sabia em boa medida: a suma importância que Deus dá ao ser humano. Tanta que, com o Natal, o Filho de Deus assumiu a natureza humana, elevando assim ainda mais a dignidade dela: tornou-a capaz de Deus.
Cada um passa a vida em busca de si próprio, em busca da sua identidade, que evolui para o encontro consigo próprio e passa pelo encontro com os outros e com o Outro em superlativo: nas contas da nossa identidade, a Bíblia inclui Deus, que nasceu para/em nós em Jesus. Ele “deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, àqueles que acreditam no seu nome” (Jo 1,12), semitismo que significa «na sua pessoa», porque o nome a identifica e a torna presente. Ora, ninguém recebe a identidade de outra pessoa, sem mais. O Natal de Jesus inseriu na pequena e na grande História um dinamismo espiritual novo que humaniza as relações interpessoais, familiares, comunitárias e internacionais; trouxe de Deus tudo para viver em perfeita harmonia, sim. Mas esse poder dado não actua automaticamente, nem pela ‘magia do Natal’: implica a responsabilidade de o assumir e viver. O Natal é o ideal a chamar por nós. E da parte humana está muito por ‘cumprir’. Não interessa o poder de mudar o Natal em época comercial. Importa mais o poder de deixar que o Natal mude as pessoas segundo o espírito do presépio.