Armindo Vaz, OCD

Decorria o ano de 1992. A um meu amigo alemão morreu o filho de 21 anos num acidente de automóvel. A tragédia fez explodir a cólera do humano contra o divino: «Ó Tu que estás lá em cima, que mal te fez o meu filho? Porquê mo levaste? Que ganhas com isso?» Com reacção semelhante confessa um intelectual em 2015: «Aos 9 anos de idade perdi o meu pai, morto num acidente de automóvel… Se Deus existe e é omnipotente, porque deixa as crianças sofrerem? Se Deus existe e tudo pode, tudo controla e tudo sabe, porque matou o meu pai?… Se Deus existia, então ou era mau ou era indiferente às agruras humanas. Por essa razão mais valia ignorarmos Deus. Mais valia sermos todos órfãos de Pai… A fé em Deus destrói a Humanidade». Na América Central, num noticiário de TV (24.7.2003), um homem queixava-se por em sucessivos acidentes na explosão de um vulcão ter perdido quatro filhos e a mulher: «Sinto-me revoltado, porque, para mandar desgraças, Deus escolhe-me sempre a mim».

A repugnância da razão humana perante o mal físico ou moral deve obrigá-la a cuidados especiais quando o liga a Deus, para evitar uma ideia equivocada de Deus criador, de Deus omnipotente, de Deus bondoso, de Deus que faz milagres… Obrigá-la a fazer perguntas certas, por amor da nossa própria sensatez e sanidade mental. Em vez de reagir interrogando ‘porquê me aconteceu este mal a mim?’ ou ‘que mal fiz eu a Deus?’, perguntas mais certas seriam antes ‘como/porquê aconteceu isto?’ e ‘como posso lidar com este mal, de modo a superá-lo ou a fazer dele oportunidade para algum bem?’

Porque Deus ainda está no horizonte da cultura ocidental em geral, a psicologia humana tende a projectar n’Ele os próprios medos, críticas e desaforos, deforma o seu rosto no espelho das próprias angústias e obscurece com os próprios instintos de defesa o suposto plano divino de amor para com a humanidade. Já Fernando Pessoa, através do heterónimo Bernardo Soares, considerava errado que uma mera dor de dentes bastasse para não acreditar na bondade de Deus. Sempre que se julga Deus perguntando «porquê permite o mal físico e moral?» ou «porquê não extirpa as injustiças que relegam pessoas para a condição de ‘dispensável’?», pode cometer-se (inconscientemente) um ‘pecado’ de idolatria, pois rebaixa-se Deus ao nível dos juízos, da medida, da altura e do comportamento de uma pessoa. Quando se pergunta por que Deus não intervém na história do mundo para acabar com o mal…; quando intelectuais argumentam: “se existe o sofrimento do inocente, Deus não existe” ou “se Deus existe, deve-me uma explicação”…; quando se afirma que a existência do mal é prova da não-existência de Deus…; quando alguém candidamente se interroga em tom de objecção se é possível acreditar em Deus depois do panorama de genocídios, massacres, violações e brutais assassinatos de crianças, opressões e crimes contra a humanidade…; quando as pessoas se questionam sobre a existência ou a justiça de Deus, renegando-o por causa do sofrimento e da desgraça dos inocentes, e se escandalizam por Deus, Pai bom, o consentir arbitrariamente ou por ficar surdo às orações dos fiéis…; quando, enfim, o sentam no banco dos réus por causa dos males existentes…, estão a funcionar com a concepção de um Deus intervencionista, de um Deus que – supõem – poderia e deveria impedir objectivamente toda a espécie de mal cometido ou sofrido pelos humanos ou que Ele deveria ter criado um mundo melhor em que não houvesse lugar para o mal físico e para acidentes aparentemente absurdos, onde os inocentes não sofressem e as crianças não fossem torturadas. Assim pensava, revoltado, o médico do romance A peste, de Albert Camus. Exausto de tratar pessoas atingidas pela peste assoladora, quando o sacerdote lhe diz que a situação “é revoltante porque excede os nossos limites, mas talvez teremos de amar o que não podemos entender”, o médico responde: “Não, padre. Tenho do amor outra ideia. E recusarei até à morte amar esta criação que tortura as crianças” (Biblioteca dos prémios Nobel de literatura; Opera mundi; Rio de Janeiro 1973, p. 211).

Quem pede a Deus esclarecimentos pelo mal evitável e inevitável que acontece no mundo torna-se suspeito de alguma forma de fundamentalismo ou de dificuldades na compreensão dos textos bíblicos, a partir dos quais se construiu uma imagem de Deus desfigurada. Quem acusa Deus de lhe ter matado o filho jovem ou o pai ou de ter matado a humanidade inteira no relato bíblico do dilúvio identifica-o porventura com um Deus castigador, cruel, porventura vingativo. Mas essas acusações não fazem justiça aos relatos bíblicos. São uma clara e lastimável deturpação deles: não atendem ao seu carácter literário nem ao tipo de linguagem que eles usam. São o entendimento naïve, ingénuo, pueril, fundamentado no literalismo, no historicismo, numa leitura à letra, deficiente, das narrativas bíblicas de criação e de outras. São uma sua interpretação não contextualizada, fundada em pressupostos gerados ao longo de séculos e fora do contexto em que foram escritas. Por isso, voltaremos a este tema, tão complexo como importante.     [continuará]