Frei João Costa, OCD

1.  O relato do sacrifício de Isaac (Génesis 22:1-18) é muito estranho, embora, talvez, melhor devêssemos dizer: verdadeiramente, ou simplesmente, aterrador. É tão estranho – digo, tão aterrador – que não sei como ninguém sai porta fora da igreja ao escutá-lo na liturgia dominical!

      (Opção a considerar é que ninguém o escuta, por isso ninguém sai! Ou então, temos todos uma fé da estaleca da do pai Abraão!)

      Então não é que Deus mandou a Abraão que degolasse e lhe oferecesse em holocausto (!) a Isaac, «seu filho único»? – Incompreensível!

2. Creio que devemos puxar um pouco a fita atrás, para melhor percebermos (ou mais estarrecermos) com tal pedido ou ordem de Deus.  Vejamos:

§    Durante longos anos, Abraão fora homem a caminho com Deus; a caminho quer dizer amigo, pois dois inimigos não caminham juntos. Tão profunda amizade acabou transformando o seu coração ao ponto de merecer ser acolhedor da promessa de Deus – e que promessa! Isto é, aprendeu à sua custa que, quem se decide a viver com e para Deus, verá que o Senhor cumpre o que promete – o que é muito mais que tudo o que uma mente humana possa imaginar ou possa ansiar…

§    Quando já não era novo, e sendo já bem maduro na fé, Deus estabeleceu aliança com Abraão; e, em consequência, vinculou-se a ele, prometendo-lhe uma descendência tão numerosa como as estrelas do céu, como as areias das praias do mar!

§    O certo é que longos anos passaram por Abraão – e o mesmo se diga por sua mulher, Sara – e não lhes nascia o filho… Falharia Deus em sua promessa? Poderá Deus falhar ao que seja, mesmo a um amigo?

§    Não, Deus não falha nunca e também não falhará da primeira vez. Aliás, contra todas as aparências e expectativas, o coração de Abraão sabe – e ensina-nos a nós, seus filhos, a saber – que «Deus está sempre a nosso favor» (Romanos 8:31); e se Deus está a nosso favor, quem estará contra nós que nos possa dividir ou vencer? Ninguém. Ninguém, jamais!

§    Quando, por fim, lhes nasceu um filho – Isaac – Sara, a mãe, tinha 91 anos (e Abraão, 100!).

§    Entretanto, o menino crescia saudável, vigoroso e robusto, que dava gosto! Na sua fresca alegria e jovialidade era a luz dos olhos do velho pai Abraão que, vendo crescer mais e mais os seus rebanhos e aumentar a sua prosperidade, já não mais se lamentava por vê-los ir parar a mãos de estranhos.

3.  O nascimento e crescimento de Isaac representa a certeza de que a Voz que promete esperanças, rebanhos, terras e descendência numerosa, cumpria o que prometia e o selava com aliança. Desde o início, por iniciativa e promessa suas, Deus cumpre, não falha! Não falhou, não falhará!

4.  Um dia, porém, aquela mesma Voz-fonte-de-esperança ordenou a Abraão que lhe sacrificasse a luz da sua esperança – que matasse o menino e Lho oferecesse morto!

      Mas que ordem tremenda! Poderia lá ser!…

      Mas quem, ontem ou hoje, poderá aceitar que Deus lhe diga: «Oferece-me o que tens de melhor – o teu filho Isaac – em sacrifício?».

      Não, hoje não compreendemos tal; Abraão, porém, sentiu-o assim, sentiu que era para obedecer e obedeceu, e cumprindo e completando todas as tarefas – com uma longa peregrinação pelo meio – até chegar o momento álgido de erguer o cutelo sobre o pescoço do filho!

(Incompreensível, apesar de que exista, para nós, uma vantagem sobre Abraão: hoje sabemos que aquilo era um teste à sua fidelidade – Deus quis apenas prová-lo… (cfr Génesis 22:1); E com que prova! Abraão, porém, não sabia nada disso e dispôs-se a matar a luz dos seus olhos, a prova da promessa do Amigo e da sua esperança em Deus!)

5.  Aqui chegados, estarrecemos mais uma vez.

      Perante a fé e fidelidade de Abraão a Deus, a nossa fé tremelica ainda hoje. E, tremendo, colocamos várias hipóteses (para nós, incompreensíveis todas, embora alguma mais amável que outra):

§    Para uns (Kant à frente) é inaceitável que Deus desse aquela ordem a Abraão. Para estes, quando muito ter-se-ia dado uma alucinação diabólica, sim; pois Deus jamais falaria assim. Abraão teria sido enganado por ela, portanto, pois Deus jamais pode enganar o homem;

§    Para outros (com Kierkegaard por capitão), só Deus verdadeiro pode pedir-nos (no caso em apreço, a Abraão) que sacrifiquemos o que mais amamos. Tal pedido, é certo, é uma enormidade, por isso mesmo, é que só Deus, o único capaz de sair da norma, pode formulá-lo. Por sua vez, a obediência de Abraão, sendo terrível, revela uma fé total e uma confiança absoluta em Deus;

§    ou seja, Abraão reconheceu, sim, ser aquela a voz de Deus. Sim, Abraão não teve dúvida alguma que era o Amigo quem lhe falava. E sabe também que a realização das promessas de Deus depende inteiramente do poder de Deus, e da nossa confiança deposta Nele! E por isso age.

      E não, também a fé de Abraão não é normal – por isso, o pai está à altura de Deus, pois tudo nele foge a todos os esquemas e medidas que possamos inventar e seguir. Uma fé assim – enorminha, diz-se em alguns lugares! – prescinde de caprichos pessoais, de todas as medidas ou cálculos humanos, de toda a lógica racional; e confia. Quem agora assim actua só o pode fazer por ter sido antes tocado e confirmado por Deus; só pode ser alguém que com Ele muito andou, com Ele muito lutou – com Ele e consigo mesmo! – até haver tocado a fímbria do mistério mais profundo – o de Deus! É óbvio que Abraão não entendeu (nem podia entender) o que Deus lhe pedia – apenas que era Deus quem lho pedia… E por isso se dispôs a cumprir o que pedido lhe era, mesmo sem compreender. Nunca tal antes se ouvira; nem da parte de Deus, nem da da humanidade representada em Abraão, que acreditou que a promessa de Deus não podia falhar, e não falharia, nem falhará. Bendita fé de Abraão que acreditava que o poder de Deus poderia (e ainda pode) fazer renascer das cinzas o seu filho imolado! Aliás, se do seio morto de Sara – não tinha ela 91 anos quando deu à luz? –, Deus fizera nascer Isaac, como não poderia, agora, fazê-lo ressuscitar do pó dos mortos?

6.  Abre, agora, os olhos, leitor, leitora, e vê: já Abraão ata as mãos do menino e, manso, coloca o filho sobre a lenha do sacrifício! E logo toma e ergue o cutelo… e… e ouve-se a Voz – «Abraão! Abraão! Não desças a mão sobre o menino! Eu vi que tu respeitas a Deus, pois não me negaste o teu filho único!».

      Bendito seja Deus!

      E vendo nós, hoje, homens e mulheres do séc. XXI, que o pai já desata os nós da corda que prendem o filho, digamos: – Tu, porém, Pai Eterno, não perdoaste a vida do teu Filho Amado, o teu Filho Único – Jesus!

      Glória a ti!

      Glória a ti, honra e louvar a ti, que pelo sacrifício de Jesus nos salvaste!  Sim, Tu entregaste Jesus à morte para, através do Seu sangue, nos livrares da escravatura do pecado e da morte!

      Glória a ti, a quem não agrada a morte dos teus fiéis!

      Glória a ti, que em todas as eras nos tens poupado e que, na plenitude dos tempos, por nossa causa, não poupastes o teu Filho!

      Glória a ti!

7.  Aceita, Senhor, os nossos hinos de louvor e honra, e dize aos nossos corações cansados e perturbados aquelas coisas, grandes e pequenas, que pedes sejam sacrificadas (e que ainda não estamos dispostos a fazê-lo). Fala, Senhor, e dize; fala-me, ainda que sejam palavras duras de ouvir (e sê-lo-ão); fala até que meu duro coração te oiça. Fala até que de mim te contentes por eu te responder: «Aqui estou» (Génesis 22:1).