Frei João Costa, OCD

1.  Nestes dias pascais, logo, superlativamente luminosos, o olhar da alma foge-me e firma-se, repetidamente e sem eu querer, na leitura do livro dos Actos dos Apóstolos.

Algures, no meio de tanta luz, logo depois duma missa, atiro-me para a estrada e, na cabeça – ou será, no coração? –, as palavras do capítulo 15 perseguem-me bolindo-me com as ideias; não me ferem, entendam-me bem, bolem-se-me, quer dizer, viram-se para aqui e viram-se para ali em sereno desconforto.

É tão actual esta leitura!

O que verifico, em primeiro lugar, é que aquele livro narra as acções dos Apóstolos, não dos anjos; e que foi a mulheres e homens pecadores – e mais uma vez, não a anjos – a quem o andar da Igreja ficou encomendado pelo Ressuscitado. O que já não sei é como teria sido a história se ficássemos sob as asas e o olhar daqueles; mas como foi sobre o andar e o olhar de humanos, por que haveremos de admirar-nos se levamos vinte séculos caminhando aos ziguezagues? É tudo quanto noto: ziguezagues. Ontem e hoje, ziguezagues. Haveria, porém, outra maneira de caminhar e de acertar?

2.  Em que me firmo eu, pois, ali no capítulo 15 dos Actos? Leio ali que a comunidade cristã de Antioquia, – na Síria; actual, Turquia, uma cidade conhecida por ser «bela e dourada» e «rainha do oriente» – era uma comunidade de fé pujante, o que não nos deve admirar. Valha o facto da cidade ser uma enorme colmeia humana de mais meio milhão de habitantes, número bastante considerável para uma metrópole do séc. I. Era, aliás, um verdadeiro empório comercial, desportivo, artístico e turístico. Foi, pois, ali que nasceu uma comunidade cristã muito viva, que se mostrou capaz de se evidenciar como plataforma de envio missionário. Foi também ali que, primeiramente, os discípulos do Caminho foram chamados cristãos, isto é, discípulos de Cristo. Honra lhes seja, pois.

Para além das virtualidades que decorrem do seu estratégico posicionamento geo-político e financeiro, a comunidade de Antioquia tinha líderes verdadeiramente capazes e audazes, e nos demais, almas ousadas e ardentes; ou seja, tudo ali confluía para que naquela terra próspera o Evangelho desse bons frutos.

3.  Nunca seremos suficientemente gratos a Antioquia por ali termos sido baptizados com o honroso nome de cristãos, e por ali terem acolhido Paulo, e o terem enviado mundo fora a evangelizar, lado a lado, com Barnabé. Isto parece-me duma audácia tão corajosa, de cujo intrépido impulso ainda hoje beneficiamos. A maneira como rezaram, como impuseram as mãos aos missionários, e como os abraçaram antes de partirem, ainda hoje me aconchega! Isto, porém, não é tudo, porque:

4.  A maneira como encararam e enfrentaram os problemas também me estremece. Então não é que, estando a comunidade em paz, trabalhando, rezando e missionando em paz, chegaram uns irmãos, «vindos da Judeia», e começaram a confundir os corações ensinando diferentemente do que ali se vivia?

Eu que não vivi o filme original, só posso imaginar o que queira dizer a frase: «Isto provocou muita agitação e uma discussão intensa»! Era o que eu imaginava: ainda bem que as comunidades cristãs caminham com pés, e não com asas; pensam com cabeças e corações humanos, e não de anjos!

5.  Ah! E como agradeço ao Espírito Santo esta frase: «Isto provocou muita agitação e uma discussão intensa»! Sim, meus senhores, nós discutimos, nós discutimos! Sim, senhores e senhoras conformistas, ao contrário dos anjos, nós, pobres discípulos e discípulas de Cristo, discutimos intensamente! Quão intensamente? Isso já deixo à imaginação de cada um; uma coisa garanto, porém: por vezes, é mais que acaloradamente, já que aqui não é desejável que sejamos patos mudos ou ovelhas que se deixam tosquiar e encaminhar para o matadouro só porque sim, só porque apetece ao iluminado de turno…

Digo, que agradeço tal frase porque tal me traz outra certeza: aqui – e este aqui é em todos os lugares, muitos deles pequeninos e longínquos (mas nunca isolados), e tantos, enormes e capazes (mas nunca suficientes em si mesmos) – aqui, dizia eu, «decidimos nós e o Espírito Santo»; ou, ao contrário: «O Espírito Santo e nós».

6.  Eu que nada sei e apenas algo entrevejo desde a nesga da janela da minha cela, quero garantir-vos uma coisa: o que trazia na ponta da caneta para aqui reflectir era: como ser-se cristão em contexto pós-pandémico, que é o que ultimamente tanto me ocupa a oração e o espírito. Enfim, nesta hora que é a nossa, que desafios nos sobram, e ora nos urgem? Que trilhos haveremos de percorrer: aqueles que entendemos ou almejamos, ou os que o Espírito nos aponta? Como haveremos de os percorrer, sós — e nunca um cristão só é verdadeiro cristão! –, com os perfeitos, ou com os estropiados da vida e da fé?

A resposta é que eu a não sei sarrabiscar – soubera-o eu… –, o que, porém, não quer dizer que não me pre-ocupe. Que sim, ocupa. Sim, preocupa. E perdoem-me se não acertar (e se acharem bem, até poderemos discutir isso… pacificamente, claro.), mas parece-me que:

a) Da oração, reflexão e equação que urgem fazer-se, não podemos jamais excluir quem já tudo sabe e tudo antevê, o Espírito Santo. É lei que a busca do espiritual e a de sentido aumentem em tempo de crise. Actualmente, porém, essa demanda parece não desejar atravessar os seculares umbrais das igrejas, isto é, a maioria já não julga necessário propô-la dentro dos átrios sagrados; daí que mais me pareça que o Espírito Santo tem de fazer parte, isto é, deve ser incomodado e invocado e deve acompanhar, a nossa busca;

b) é de fácil verificação que uma parte considerável dos cristãos, jovens e menos jovens, vazou da vida da Igreja. Os jovens, porque sim – e têm, tantas razões os seus sins…; os velhos porque, entretanto, descobriram que a tudo podem assistir e usufruir desde o sofá e em pantufas! Em tempo de individualismo e descompromisso, cada um – pensa-se –, vai ao que lhe dá jeito, como e quando jeito lhe dá, se lhe dá jeito… Isto é, vai-se à fonte, a qualquer fonte, e bebe-se se se tem sede, sem se perguntar pelo selo de qualidade, que o que interessa é que mate a sede, mesmo se, bebendo, ela, afinal, aumenta. Obviamente, porém, ainda hoje, nem tudo o que luz é água;

c) é notável como hoje tão rapidamente nos acomodamos e amodorramos; isto é, é assustador como, entre nós, se perdeu a noção de que devamos caminhar juntos rumo a algo, que nos devamos ajudar a rumar juntos a uma meta que está para além da espuma dos dias, para além do conforto e do gozo que comprar se possa com o nosso pecúlio! Para os mais distraídos, Francisco resumiu isto, fulgurantemente, numa frase: Estamos todos no mesmo barquinho! No barquinho lastramos todos, remamos todos, salvamo-nos ou perecemos todos! E se o barco perigar não terá de ser só Pedro a ter de berrar por quem nos salve! Cuidado, porém, senhores; reparem: não vão pelo que digo, mas cuidem bem que há uma vida eterna para garantir! Sim, há que garantir que o barco chegue à outra margem e, é óbvio, que não pode chegar lá vazio ou só com o timoneiro;

d) a mim agrada-me a austera liturgia católica onde nasci, me banhei e cresci, e onde me refresco e nado. Mas compreendo bem, sobretudo nestes tempos acendrados, aqueles que a desejam mais jubilosa. E também compreendo bem quem, cansado da mesmidade dos ritos, anseia por gestos que os confrontem, face a face, com Cristo, embora não talvez com as chagas dos pobres; e compreendo bem os que clamam por silêncio e contemplação e dias de retiro, mesmo sem ligação à comunidade. Mas, e o resto?

7.  Certos de que o futuro a Deus pertence e de que o Espírito Santo já o entrevê, e certos ainda de que entre nós o caminho se irá fazendo, sempre em ziguezague, uma coisa me exijo e aos demais companheiros peço: Não se exclua Deus de entre nós, das nossas ruas, praças, empresas, recreios ou casas. Não queira ninguém encarcerá-lo no céu ou privatizá-lo na terra. E lembremos: nós, na Igreja, nunca caminhamos sós, nunca, que caminhar-se só não é fazer caminho; aqui somos sempre muitos tus, um dos quais, Deus. E todos a caminho. Talvez, talvez, quem sabe, as pessoas deste tempo estejam muito cansadas de caminhar – e que a pandemia acentuou o cansaço e evidenciou maleitas e o carcomido das nossas comunidades, disso não duvido… –, ou já não saibam o caminho de regresso à igreja, ou já nem distingam tal edifício dos demais. Talvez que aqui já não haja calor e fofura. Talvez a igreja-edifício já não seja o oásis que se busque e o que melhor sirva à sede específica de cada um. Ou, talvez, já não saibamos nada de sede e de águas vivas. Talvez. E se assim for, ainda mais rápido urge sair como brigada avançada capaz de ouvir e sarar os que deambulam e jazem cansados e desvalidos nas bermas dos caminhos. Uma coisa é certa, o desejo de sentido não desapareceu, antes, reclama, de nós, uma proximidade que acolha a singularidade de cada um.

8.  Do que leio nas palavras de Jesus no evangelho deste domingo VI de Páscoa (Jo 14:23-29), à Igreja enquanto nós, isto é, enquanto comunhão de tus, cabe-nos guardar a Palavra, amar como Deus nos ama, acolher o que o Espírito de Jesus nos diz ou recorda, e permanecer na paz.

É grande o desafio, convenhamos. Aceito que me digam que são precisos caminhos novos, mas uma coisa é certa: enquanto por cá sentirmos a ausência de Jesus, é o corpo da Igreja reunida e o Espírito quem discerne o caminho a fazer.

9.  E é que no caminho para Jericó jaz um homem roto no corpo e na alma.