Frei João Costa, OCD

1.           Tendo-nos Jesus bem diante do olhar, frontalmente nos confronta com o relato das bem-aventuranças. Como discípulos bem sabemos que aquelas palavras são o centro e coração do seu Evangelho e límpido espelho onde devemos mirar-nos, e voltar a mirar-nos, se necessário cada manhã, para avaliar a nossa peregrinação, aprofundarmos a norma da vida cristã a que obedecemos e a missão a que não podemos renunciar. Se bem as recordamos haveremos de reconhecer – e não será necessário desdobrá-lo aqui – que não são um texto fácil de aceitar, pelo tanto que contradizem, quer as nossas aspirações de grandeza, quer o modo confortável de vivermos!

2.           Meditá-las é, pois, ainda hoje, nada mais, nada menos, que proceder à inteira descrição da ternura do coração de Jesus, pois quem as sabe e, sobretudo, quem as pratica, conhece de verdade tal coração. Olhá-las é, enfim, contemplar o coração mais belo de todos, o amor mais terno, mais puro e santo, mais generoso e dadivoso.

3.           Lembrar ainda dois pormenores: i) dos quatro Evangelistas, só Lucas e Mateus no-las legaram, e que entre os textos ambos não existe total simetria; ii) e em ambos os Evangelhos elas aparecem enunciadas bem ao início dos referidos textos, como a recordar-nos que são elas e não outras palavras, as fundamentais para a missão e a peregrinação dos discípulos.

              Eia, pois.

4.           Ponderemos, então, o que me ocupa, e é isto: como chegaram as bem-aventuranças à boca de Jesus? De onde arrancou Ele este texto tão fundamental para o caminhar da comunidade cristã de todos os tempos? Serão absolutamente novas ou existirão precedentes no Antigo Testamento?

5.           Sim, creio que, sem medo, se pode dizer que as bem-aventuranças pronunciadas para iluminarem fulgurantemente o caminho do discipulado não são inteiramente novas. Em boa verdade, devemos assumir o Antigo Testamento como um longo caminho de quase vinte séculos até à boca de Cristo – conhecer aquele percurso, desde os Patriarcas, passando pelos Juízes, Reis e Profetas, ajuda-nos a perceber as palavras que Ele nos deixou como mapa, guia e luz para os nossos passos e prantos, mãos, olhos, mente e coração. Foram quase dois mil anos de longa e bem-aventurada depuração – tal é o que sempre deveríamos ter presente. E não erramos jamais se dissermos que o longo caminho do Antigo Testamento pode resumir-se da seguinte maneira: i) tudo o que existe vem de Deus, pois Deus, por amor, tudo chamou à existência (menos o mal); ii) toda a criação encontra-se sujeita à pressão do pecado que visa destruí-la, destruindo, assim, o plano amoroso de Deus para connosco e a criação; iii) Deus elegeu um homem (Abraão) e um povo (Israel) com os quais estabeleceu uma aliança; o proveito da Aliança é todo nosso, entenda-se…

Assumamos, pois, desde já, que a Aliança proposta por Deus é a sua mais que generosa e bela resposta ao pecado da Humanidade – se, pois, o pecado, significa o rasgar da amizade entre a Humanidade e Deus, a Aliança é a unilateral oferta de restauração dessa amizade, como se jamais Deus se lembrasse de que ela fora (e é constantemente) rasgada e por nós violada e vilipendiada!

Desde a origem, sempre Deus anseia por um permanente vínculo de amor que demostre, substantivamente, a amizade que dizemos ter-lhe e que, inegavelmente, por iniciativa sua Ele nos devota. Porque tal como existe um laço entre a mãe que amamenta, e o filho que dela depende, assim jamais Deus nos esquece mesmo quando lhe fugimos e Dele nos escondemos – como se ousáramos sonhar que Dele nos poderíamos esconder no fundo do mar ou para lá da cortina do pó das estrelas! Afinal, essa é a verdade, depois de tanta e tão repetidas alianças, estabelecidas connosco por Deus-Pai-e-Mãe nosso, o Antigo Testamento não conseguiu jamais manter firme essa união, não conseguiu ser inteiro amigo de Deus.

Sim, calcorrear a pé os velhos barrancos do Antigo Testamento é como percorrer uma história de amor infiel entre Israel (o eleito entre todos os povos, para ser o povo amado) de Deus. Não raras vezes, aliás, Deus compara o seu amado povo a uma esposa que o não é em verdade, por ser, repetidamente, infiel a seu marido; pelo que chora Deus, como um pastorinho tão desditado quão por nós apaixonado, por se ver desamado e malquerido, enjeitado e trocado por mirrados desamores infiéis.

Sim, ao longo de tão longa história marcada pela escolha de Deus e pela Aliança que nos oferece, Israel foi quase sempre um povo ingrato, casmurro e rebelde, porque contra todas as juras de amor, jamais amou a Aliança; jamais confiou e se deixou cair nos braços de Deus. Enfim, o Antigo Testamento é essa história de frequente ressesso não e da permanência do nim de mau gosto, mui raramente de um firme e claro sim a Deus; e quando sim, sempre este foi tão duradoiro como o matutino orvalho de verão!

6.           Depois de quase vinte alquebrados séculos, isto é, de repetidos e consabidos nãos e de negros ultrajes à Aliança (a que se sucediam as duras repreensões e castigos de Deus), surgiu, por fim, do seio doce dum restinho pequenino e santo, uma gentil menina capaz de amar a Deus por cima de tudo, e de corresponder sim com sim, ao Seu amor irrenunciável – sim, era menina e o seu rosto sorria, como sorri um raio de sol em negros dias penumbrosos. Chamava-se Maria. Era menina terna e gentil como as maçãs e as pombas brancas, e a sua vida só queria corresponder aos laços da amorosa Aliança do enamorado Deus. Enfim, o que jamais haviam conseguido homens prudentes, de braço valente e valoroso como o dos Patriarcas e Juízes, dos Reis e Profetas – quer dizer, o que jamais inteiramente havia alcançado algum dos sucessivos valentes representantes que Deus dera a seu povo amado para o guiar pela Aliança – conseguiu-o, sim, por fim, uma desconhecida donzela de Deus eleita. Escolhida ou eleita ela foi, como antes outros muitos o haviam sido. Sim, Deus reparara na humilde e jovenzíssima donzela, pertencente aquele perseverante restinho humilde e sem voz – e, sim, se ela quisesse, finalmente, Deus seria inteiramente amado por coração humano; e sê-lo-ia, não por valente guerreiro ou samurai, mas por donzela sem sobrenome nem títulos, sem pergaminhos nem curriculum vitae!

7.           Eis que depois duma longa história de grandezas e humilhações, de inenarráveis desobediências e desafios a Deus, restava, enfim, esse restinho pobre e humilde, humilhado e sem voz, mas capacitado para entender a linguagem de Deus. Não tinha voz capaz de congregar um povo, é certo; não era da casta dos sacerdotes nem da dos generais, mas possuía aquela voz interior, aquele puro fiozinho de mel dourado a que se chama consciência limpa que, diante dos infernos ou dos poderosos tronos, sempre afirma um punhado de certezas: i) não se pode jamais idolatrar a criação; ii) não se pode jamais virar as costas ao Criador; iii) ninguém pode jamais sustentar-se nem vangloriar-se nas suas riquezas; iv) não se pode jamais viver tão agarrado ao presente e de costas ao futuro e ao juízo sobre tal andar!

8.           Era, de facto, um resto bem pequenino, que ninguém lobrigava nem via, e se via, não valorizava; mas era um restinho que sabia ouvir a voz de Deus por entre os ruídos que o sucesso produz, e sabia co-responder-Lhe, como a seu tempo disse a Menina:  – Aqui estou, porque para mais não estou. Que só existo porque existes Tu e para o que Tu precisares de mim!

9.           «Faça-se em mim…» é, pois, uma frase verdadeira, típica de gente atenta e não distraída; disponível, franca e capaz de responder nada mais que a Deus. Não de quem se habituou a fugir, para de seu divino rosto se esconder; mas de quem aguenta diante Dele, para Lhe agradar, porque nele confia, amando-O acima de tudo.

Foi nesse recanto de ternura, oração, desvelo e respeito por Deus, onde mais a Mãe brilhava e esplendia, que cresceu e aprendeu Jesus. Foi nesse austero ali, remendado e aquecido pelas chamas duma lareira pequenina, que Ele medrou, sentado num mocho e de malga de caldo ou leite meio vazia nas mãos. Cresceu tisnado ao sol e a cirandar entre a cozinha de terra batida e as fitas esvoaçantes pelo chão da oficina de José.

Quantas vezes não viu Ele a mãe descalça e aflita, de avental passageado, sem ter no bolso do lado direito uma côdea de pão negro para Lhe dar! Quantas vezes não viu Ele as magras mãos da Mãe limpando as escadas dos ricos e depois ser despedida com a paga de más palavras. Sim, Ele sabia pertencer à margem onde restam os pobres que medram à fome, que não têm direitos, nem trabalho, nem salário, nem férias, nem reforma – e que ainda assim, sabem que o nome de Deus é Pai, e não apenas dos pobres. Sim, Ele cresceu vendo a casta sacerdotal dizer-se abençoada e só abençoando a lauta mesa dos ricos – e como haveriam eles de abençoar a sempre vazia dos pobres? Sim, Ele conhecia como ninguém a dor das mães sem direito às migalhas das mesas fartas.

Jesus sabia pertencer à franja fiel desses pobres, cuja fé se sustentava na esperança que tudo vê, e tudo recompensa, tanto a maldade dos muitos maus, como a bondado dos poucos bons. E sabia bem o valor do pão duro repartido por mãos sôfregas, e que Deus lhes era fiel, como o sol ao caminho. Sabia que os pobres não se podiam fiar dos ricos, e que os ricos apenas se fiavam de si, sem precisarem de mais alguém, nem de Deus. E em quem, pois, haveriam de esperar os pobres, senão em Deus? Em quem se fiariam?

E Maria esperava em Deus, só em Deus esperava Maria, a filha do restinho de Israel. E José esperava em Deus, só em Deus esperava José, o filho do restinho de Israel. E com os filhos pobres do restinho de Israel aprendeu Jesus a esperar em Deus, e só em Deus esperava Jesus, o pobre.

O que me pergunto é: a quem mais senão aos pobres, aos perseguidos e injustiçados, e aos que choram a barriga vazia, pode Jesus proclamar felizes e bem-aventurados? Aos ricos fraudulentos, e aos refastelados nos canapés do poder não, certamente. Afinal tudo passa, o ouro e o brilho do poder, e só Deus em sua fidelidade é que não muda.

Como, pois, poderia Jesus bem-aventurar os ricos, sem que a língua se lhe colasse para sempre ao paladar?

Sim, as bem-aventuranças resumem um lanço de amor que lentamente se aninhou no coração dos pobres, e no de Maria, e dele verteu para Jesus e o coração pobre dos irmãos de Jesus, para que dissessem ao mundo que a felicidade é reconhecer que só Deus é o primeiro em tudo, e por inteiro se dá a quem, vazio, está disponível para O receber!