Frei João Costa, OCD


Um homem em chamas ou uma vela a arder, assim foi o Fradinho do Carmo.

Se alguma constância existiu na sua vida foi a sua total fidelidade à oração que, aos olhos de todos, o volveu incêndio que alumiava e aquecia. Que tanto a todos atraía. Em 1934, quanto tinha quarenta e sete anos de vida, Frei João d’Ascensão encontrou o eixo da sua vida, precisamente quando Portugal, depois de terrível guerra fratricida, se encontrava exangue, desvalido, em maré vaza.
Registemos, portanto: foi em maré vaza, num dos mais terríveis afundamentos da nação e com a religião reduzida a escombros que o Fradinho se volveu pão, alimento e pérola para os pobres que o buscavam e se lhe confiavam, ou também aqueloutros que com ele ocasionalmente se entrecruzaram. Retenhamos, pois: ao norte do país, inesperada fogueira se acendeu na maré vaza do oitocentos português.

Fácil é de identificar que a primeira fase da sua vida, até Maio de 1834, foi de serena procissão claustral; já a segunda, depois daquele equador, foi uma vida sem claustros, sem procissões, sem a nervura da vida regular, logo mais exposto a qualquer vento frio ou intempérie que viesse a precipitar-se sobre as ancestrais ruas de Braga. Fosse Verão, quando ali até as pedras ardem, fosse Inverno, quando o duro lajedo enregela, aquelas bimilenares ruas ofereciam-se a seu passo como terno claustro em que a sua alma sabia recolher-se e rezar.

Que o seja, se o é, não o chamo inovador – o homem no deserto da cidade, o frade que reza na cidade, que reza a cidade – mas já digo que, tudo tendo-lhe sido esbulhado, menos o burel, e abandonado na solidão das vielas e ruas escuras, então ali ele soube reinventar-se e rezar.

Em boa verdade, nem antes nem depois, jamais as marcas da sua oração foram algo parecido ou comum ao que ao tempo houvera, fosse na Litúrgica das Horas ou na Eucaristia, no marianismo ou na sua devoção pelas Almas do Purgatório; mas, sim, já se mostrou incomum no modo delicado e intenso como se incendiou e ardeu num qualquer claustro, fosse ele rectangular ou em linha.

Sim, houve, mas se equador não houvera, a sua vida seria calar e calado viveria a rezar, qual círio de altar.

Em Portugal, sabemo-lo, os claustros ruíram depois de meados de 1834; não por vontade de quem os alçara, mas por alheia volúpia. Ruíram, dizemo-lo, em sentido figurado, visto que os lustrosos iluminados, quando deles trataram de expulsar as sandálias santas, ou os entregaram às botas cardadas, o que não é de todo mau, ou os humilharam debaixo dos nobres cascos das azémolas.

O Santo Fradinho foi um dos muitos que, ao tempo, dos claustros foram enxotados. Porém, não se inquietou jamais, nem jamais se acocorou. Se antes rezava como manda a Regra de Santo Alberto de Jerusalém, de igual depois continuou a rezar. Lê-se na Regra que alumia o Carmo: «permaneça cada um na sua cela, ou perto dela, meditando dia e noite na lei do Senhor e vigiando em oração, a não ser que se deva dedicar a outros justificados afazeres». O verbo que no preceituado tem força é «permaneça». Ora, se ela manda permanecer, sempre ele permaneceu em oração; e permaneceu antes e permaneceu depois. Que, pois, enfim, lhe importaria não poder rezar no claustro, se por claustro podia tomar qualquer viela, qualquer ruela ou capela? Qualquer carreiro ou praça?

Quem mais creia sempre poder cavalgar a crista da onda, tanto mais ignora o que atrás se indiciou: é na maré baixa que tesouros se acham e da escura lama se desenterram luminosas pérolas – de idêntica massa escura, a seu tempo, emergiu o Fradinho a rezar! A rezar. Rezando sempre, baixinho, e em todo tempo, e em todo o lugar, sempre em zeloso cumprimento. No seu coração e na sua mente, o mesmo em suas nuas mãos e pés descalços, gémeos andaram e unidos, a mesma penitência escorreita, o mesmo piedoso silêncio, a mesma oração confiada, e a raiz de toda a sua vida, a caridade. Nunca nada tanto o deliciava como a consideração dos «mistérios da Redenção», pois nada tanto lhe avivava o coração como os exercícios pios, onde se procurava recluir e, na inversa, ao olhar do povo mais o faziam resplandecer, e mais e mais o moviam à caridade. Quem se admirará, portanto, que sem hesitar cumpra o preceito da Regra de rezar noite e dia, de orar sem desfalecer, de permanecer tremeluzindo diante do altar e do sacrário? Foi isso que viram os do seu tempo e o discípulo assim resume: «A vida de Frei João era uma contínua oração. De contínuo elevava a Deus o seu espírito e o seu coração em toda a parte e em todo o lugar».

Homem de oração era e frade eucarístico e anjo dos sacrários de Braga.

Frei João d’Ascensão celebrava piamente a Eucaristia. Quando leio, e depois repito, o advérbio piamente só me lembro de certos padres que ao celebrar missa se assemelham a amena angra, à qual os barcos acorrem para descansar, dessedentar-se ou se recompor. Ali a voz elevam, e os braços e as mãos fazem pequeninas ondas que, pronto, beijam o calado dos barquitos e dos navios – assim, beijando, celebrava missa, o Santo Fradinho. E em pós celebrá-la, dizem, assistia a uma ou mais missas. Como delicada acção de graças, quero crer. E isto de ordinário, não apenas nos dias de egresso.

Sempre que podia e o mais que podia, Frei João visitava demoradamente o Santíssimo Sacramento quando exposto à adoração pública; e sem cuidar que fosse ou tivesse de ser na sua igreja, que sua não era nenhuma, visitava frequentemente os sacrários das igrejas de Braga, onde, como adorante anjo protector, longamente restava em prolongada adoração. E não se fechava aqui a sua jornada de oração, porque depois seguia rezando e meditando, percorrendo, passo a passo, a Via Sacra; e, por fim, terminada esta, venerava cada uma das imagens dos altares.

Carmelita Descalço ele era, e como tal amava a oração de recolhimento. Ora, quem ama protege e guarda o objecto da sua devoção. Dizem, por isso, os de Braga, que Frei João d’Ascensão «ora se encontrava neste templo, assim noutro, com todo o recolhimento». Estar em recolhimento não é nunca tanto como uma Missa, mas é muito típico da espiritualidade do Carmo que sabe penetrar no íntimo e, a sós, recolher-se em diálogo no mais profundo centro da alma, ali onde só vive Deus em sua glória e a nós se une tão intimamente.

Homem de oração era e frade de breviário.

Em algum lugar se diz que o Carmelita Descalço Frei João d’Ascensão, dedicado, recitava devotamente o Ofício Divino. Eu entendo que as famílias de uma nação amam e honram todas a sua bandeira comum. Honram-na ou com lágrimas ou com sangue, ou com sorrisos ou com versos, ou com hinos e continências. Com aquele ou aqueloutro gesto, todas as famílias se inclinam diante da bandeira da nação. É isto que eu intuo quando leio que o Fradinho rezava o Ofício Divino como um mais do Carmo Descalço; isto é, na recitação dos salmos manteve sempre o modo pronto, atempado, sereno e cuidado, talvez não tão elevado como a águia altiva, mas bem mais que o pardalito que ora aqui está, ora ali, nunca nervoso como um melro, já tão igual à delicada rola quando pelos floridos prados arrulha.

Rezar as Horas ao modo dos Descalços do Carmo será isso – um rezar manso como a rola. E sim, delicado e manso diante de Deus se mantinha o Fradinho, não uma hora, não duas horas, mas a diário essas duas benditas horas, e as outras vinte e duas que no dia cabem. Não foi ele homem de arroubos nem de sobressaltos, não foi visionário nem agitador, antes cumpriu o que ao bálsamo sempre se pede: carícias e ternura. Recitou os salmos com o tempero e a delicadeza do bálsamo propiciatório e, depois de cumpridas as obrigações litúrgicas, ficava-se como um delicado querubim diante da Arca da Aliança. E complemente-se: para demoradamente propiciar o rosto de Deus, obviamente roubava horas ao sono e ao descanso, prolongando e estendendo a vigília nocturna; e se disso fosse impossibilitado, levantava-se mais cedo, a fim de se dedicar a este pio exercício antes da comunidade alcançar o coro e iniciar as orações matutinas.

Homem de oração era e devotado filho da Virgem Maria.

Desde tenra idade, Frei João d’Ascensão era devotíssimo da Senhora do Carmo. Ainda muito jovem, do seu hábito se revestira em sinal de total consagração à Mãe de Deus. Ao longo da sua vida, para Ela sempre tinha sinais ímpares de amor obsequioso: como ninguém venerava o Santo Escapulário do Carmo, com o qual se revestia e se defendia, e devotamente o pregava e anunciava como sinal de aliança entre Mãe e seus filhos e filhas. Recitava, sempre que podia, o Ofício Parvo ou as Horas Marianas, cuja originalidade se encontra no relevo dado à pessoa da Virgem, sem nunca, porém, a apresentar isolada do mistério de Cristo e do plano de Deus para a salvação da humanidade. E para Ela reservava muitos outros pios exercícios, como fosse a de saudá-la com a Ave Maria sempre que, não se encontrando impedido, ouvia o relógio a dar horas.

Aqui não podemos ignorar que o nome Carmo – o seu amado Carmo – significa jardim. E também não ignoramos as aspirações do Fradinho em manter-se merecedor de ser filho dilecto e fiel servo da Virgem do Carmo. Em seus gestos ou palavras a ninguém jamais feria ou magoava; e esse ninguém é mesmo ninguém, nem mesmo aqueles bichinhos que causam repugnância. Assistido pela graça e não sem esforço da sua parte, era com certeza uma alma cândida, um vergel de margaridas e lírios brancos que ele conservava terno e incandescente ao mesmo tempo, que o seu coração de uma só mulher era: da Senhora e Formosura do Carmo.
Homem de oração era e pai das Almas do Purgatório.

Entre altar e o sacrário, entre o trono da Senhora do Carmo e os claustros – sejam os conventuais, sejam as ruas e as vielas – eis toda a geografia orante do Santo Fradinho. A rezar Missa ou silencioso diante do tabernáculo, contemplando as vias sacras e as imagens sagradas em seus altares, rezando a Nossa Senhora e contemplando a sua imagem, ou percorrendo os claustros em fervorosa oração, assim o viram, contemplaram e admiraram os portugueses pelo país abaixo, mormente os bracarenses em sua urbe.

Duma geografia física aqui se trata, mas mais, sobretudo, a devocional e espiritual. Entre as devoções a que diariamente se entregava, a uma em especial se devotava: «a de orar pelas almas do purgatório, visitar os sepulcros dos claustros, e sobre eles esparzir água benta recitando salmos e responsos». Isso notou aquele discípulo que escreveu um rascunho sobre a sua fisionomia espiritual, que nunca inteiramente foi dada à luz. E notou-o ele e os muitos que em Braga viram que: «não só neste tempo [de Braga], mas em todo o tempo da sua vida foi extremosa a sua caridade para com as almas defuntas» – eis o amor que delicadamente sempre arrepanhou o coração do Fradinho Santo. Pelas «almas justas que estão em penas» rezou, sofreu e entregou todas forças da sua própria alma, todo o sangue das suas veias, toda a tensão de seus nervos. Sentia por elas uma tão extremada dedicação que por elas entregava todas as indulgências «aplicando quantas podia para que estas almas fossem aliviadas e levadas a gozar da felicidade eterna». Eis, pois, a razão por que nos seus dias de Braga, e já desde antes, a sua «caridade compassiva» em favor das «almas defuntas» se revelava notavelmente notável. Essa foi, assim creio, a grande obra de Frei João: rezar intensamente pelos mortos e beneficiar da sua solidariedade. Sim, rezar, rezar sempre, rezar e beneficiar do bem que fazia e animava a fazer às almas do Purgatório.

Aos seus dias de Carmelita Descalço exposto à intempérie, sobretudo os de Braga, que é donde as notícias mais bastas são, deve acrescer-se um sublinhado a esta piedosa devoção pelas Almas, pois se diz que se obrigava a si mesmo a «passar grande parte das noites nos claustros e nas igrejas orando sobre as sepulturas, privando-se assim do sono e do descanso para dar alívio a quem tanto dele necessitava». Esta é provavelmente a marca mais vincada da alma orante do Fradinho: o apreço pela oração em favor das Almas não inteiramente purificadas. Aquela sua tão gentil dedicação expressava-se numa intensa e delicada solenidade: por elas recitava salmos e responsos e abundantemente aspergia as sepulturas de água benta; este ternário: salmos, responsos e água benta eram rezados e celebrados tão demoradamente que Frei João mais parecia querer «sepultar-se em vida nas mesmas sepulturas».

A demora é a sua genuína marca d’água, porque a sua caridade para com as Almas era sem pressas, era caridade em andamento lento, feita cuidadosa e prolongada oração. Mais: a comunhão do humilde e piedoso Descalço com os defuntos era tão profunda, como se quisesse sepultar-se com eles para os abraçar, para com eles rezar de mão dada, a fim de com eles mais brevemente gozar das eternas consolações. Sim, os seus pés descalços afagaram as húmidas e frias lajes dos claustros do Carmo de Braga tão demoradamente, como quem as acaricia e lhes faz complacências. Tal ideia não é lúgubre, pois encerra uma tão alta carga afectiva e carinhosa que, entrevendo nós por entre os véus do tempo, um fradinho caminhando e rezando pausado, sereno e calmo à volta do claustro, ainda hoje tal imagem nos conforta e serena a alma. E nos recolhe em oração.

Oração ele era.