Armindo Vaz, OCD

“No princípio já existia a Palavra. A Palavra estava junto de Deus e a Palavra era Deus… A Palavra fez-se carne e acampou entre nós”. Para pensar o Natal de Jesus e para o preparar ao longo do Advento, há que voltar sempre aqui, à afirmação fundamental e misteriosa do princípio do evangelho de João (1,1.14): a incarnação de Deus no homem. Se a fé cristã tem lógica, há uma dimensão de Deus em toda a carne humana, ao habitar a carne de Jesus (da mesma raça e condição que todos os humanos). Carne é uma palavra-chave para entrar no mistério do Natal. No menino Jesus, o filho de Deus entrou na carne humana, tornou-se carne, imanente, mantendo íntegra a transcendência divina. Jesus é a carne de Deus, o rosto visível do Deus invisível (por assim crerem, a fé e a liturgia cristãs até celebram a festa da Eucaristia como Corpo de Deus ou Corpus Christi). É o inaudito, o mais original, no concerto universal das religiões.

Na fé cristã não há Deus sem carne. A crença num deus desencarnado seria heresia. Identificando-se com Deus (“eu e o Pai somos um”: Jo 10,30), o Jesus dos evangelhos remete-nos para o corpo. Desde o seu natal, permaneceu vivo e cresceu saudável porque foi um corpo entranhadamente amado, pela mãe, pelo pai, pela família: teve uns braços a protegê-lo, uns seios a amamentá-lo, um colo a mimá-lo. O Jesus amoroso vivia de amor desde menino. O amor familiar incarnou na sua carne e no seu corpo, um corpo que sofreu, que comeu com bons e maus, que os salvou tocando, acarinhando, morrendo. O Jesus que viria a encher de amor as terras por onde passaria…, o Jesus que repartiria saúde caldeada de amor dentro das casas e à beira dos caminhos…, o Jesus que por amor faria ver os cegos e saltar os coxos, foi antes amado. E, desde a concepção e o nascimento, proporcionou ao amor divino a incarnação no humano: o verdadeiro amor humano tornou-se divino, porque em Jesus foi impregnado pelo divino. A salvação divina deu-se à carne, na carne.

Por tudo isso, S. Agostinho recomendou aos pedintes da transcendência: “Vai pelo homem e chegarás a Deus” (citado por S. Tomás de Aquino, Expositio in… Joannem 14,2). E o evangelho de Jesus permite continuar: ama o homem e amarás Deus (Jo 13,20 e paralelos). O caminho mais directo entre o homem e Deus é a carne de Jesus, seja adorada nos braços da mãe, seja chagada nos braços da cruz. Os procuradores de Deus, para o encontrarem, são convidados a fixar-se na humanidade de Jesus. É dessa coragem que mais se pode orgulhar o amor gratuito e a busca desarmada, a coragem de sondar e sentir cada frémito de humanidade no evangelho: nos encontros transformadores com os sedentos de luz, no dom da fala e do ouvido, na dádiva da visão, na libertação do mal físico e psíquico, no toque carinhoso aos doentes, no perfume das carícias às crianças, no chorar lágrimas de sangue por uma cidade distraída do essencial, no acolhimento sem preconceitos de uma mulher atormentada, na proximidade aos considerados dispensáveis ou desprezíveis, no «morrer por» todos eles. Os relatos do evangelho não apresentam um sistema de pensamento teórico: reconduzem-nos à Humanidade de Jesus.

A ela faz-nos voltar também a mestra dos cultores do espírito que foi S. Teresa de Ávila. Contra a velha corrente espiritualista, neoplatónica, que no séc. XVI espiritualizava a fé e a vida cristã até ao ponto de excluir tudo o que é corpóreo para se realizar só no espírito – excluindo, portanto, a humanidade de Jesus –, Teresa dava grande relevo à história evangélica, ao Jesus conjuntamente divino e humano, à sua acção, palavra e paixão. A essa doutrina reagiu energicamente: “não a posso suportar!” (6M 7,14). Pensava como verdadeira teóloga, com todas as consequências para a valorização do essencial no cristianismo, que é o mistério da Incarnação de Deus num corpo humano (6Moradas 7,14-15 e Vida 22,18). Promoveu entre as Irmãs a devoção a Jesus menino: “Garanto que o vi nascido / de uma formosa Zagala. / – Pois se é Deus, como há querido / estar com tão pobre gente? / – Não vês que é omnipotente?” (Poesia 12). Exortou-as também a gastarem na noite de Natal as reservas de alegria interior e exterior, cantando e bailando. Rivalizava com João da Cruz, igualmente devoto do Natal: “Ficou o Verbo incarnado / em o ventre de Maria. / E o que tinha apenas Pai, / também já Mãe possuía… /Porque das entranhas dela / sua carne Ele recebia; / pelo qual, Filho de Deus / e do homem se dizia” (Romança sobre «In principio erat Verbum»).

A vida humana pessoal adquire mais encanto se nela houver um toque de mistério. O Natal, cada Natal, oferece-lhe esse presente: um encontro de Deus com a humanidade, que pede para ser aproveitado com reciprocidade, no espírito e no corpo.