Armindo Vaz, OCD
Ao quererem comunicarliterariamente a experiência mística que tiveram de Jesus ressuscitado na vida real, os discípulos traduziram-na em relatos de aparição dele. Contam que apareceu ou se fez ver nas variadas circunstâncias da vida quotidiana: a caminho com eles, no trabalho da pesca, a falar, a comer peixe assado, a tocar o corpo, em casa, em reunião, fora de casa, no monte, afastando-se do sepulcro… Contam que o morrer de Jesus foi superado e transcendido pela vida nova do Espírito de Deus. Os relatos, que subentendem novas formas de perceber, de ver e de ouvir o mundo, queriam suscitar comportamentos que inspirassem aos leitores uma percepção ou perspectivação nova desse mundo, um olhar diferente, uma visão pascal da vida, em que as pessoas descobrem o sentido mais profundo das suas inter-relações e dos acontecimentos. Aí, a questão “que sucedeu realmente?” torna-se irrelevante, porque deixa de lado o que é verdadeiramente importante: que os discípulos demoraram a descobrir o sentido da ressurreição de Jesus por meio da meditação ao longo de uma vida, já que os relatos evangélicos do encontro com o Ressuscitado foram escritos uns 50 anos depois.
Para os discípulos darem a entender essa experiência, seria impensável referirem-se a Jesus ressuscitado sem corpo. A sua pessoa só podia ser identificada com o seu corpo. Mas também não pensavam num corpo físico de carne e osso (como uma leitura dos relatos à letra poderia supor). Pensavam num “corpo glorioso” (Fl 3,21), isto é, que dava glória à pessoa (o hebreu usava a palavra corpo para dizer pessoa): era um corpo que fazia resplandecer e projectava para o exterior o mistério que Jesus era no seu interior. O Jesus ressuscitado era um “corpo espiritual [pneumatikón]” (1Cor 15,44), isto é, plenamente vivificado pelo Espírito recriador de Deus: já só pertencia à esfera divina, depois de ter assumido a humana. Os relatos tinham a função de sugerir o super-real: que o Cristo vivo de que tinham tido experiência mística/Espiritual era o mesmo que o Jesus crucificado. Por exemplo, o relato que põe Jesus a apontar a Tomé o sinal da crucifixão (“vê as minhas mãos, traz a tua mão e mete-a no meu lado”: Jo 20,27) quer significar que ele não era um fantasma gasoso mas era o mesmo que o Jesus histórico que eles conheceram e que continuava presente na história deles; continuava a interagir com o mundo humano, a marcar a história humana e a ter efeitos nela. O de Jesus a comer peixe dado pelos discípulos (Lc 24,41-42) quer sublinhar a realidade corpórea do Ressuscitado, para que fosse compreendido como pessoa e não como fantasma. Os relatos de aparição do Ressuscitado significavam que ele se podia encontrar com eles de forma real, embora invisível, super-real. Significavam que ele não estava fora da vida deles: era parte dela e vivificava-a por dentro.
Portanto, os relatos de aparição do Ressuscitado não surgiram de uma experiência psicológica, onírica ou mágica, de uma visão fantasmagórica ou quimérica dos seus discípulos. Nasceram da percepção super-real de Jesus vivo, que de sua iniciativa se impôs a eles, num encontro pessoal e gratuito. É importante sublinhá-lo, para que as gerações mais novas não imaginem as aparições do Ressuscitado dos evangelhos à maneira das maravilhas operadas por Harry Potter a atravessar uma parede ou a fazer as magias que o autor lhe atribui. Estas nascem de uma fantasia prodigiosa. Os relatos de aparição de Jesus Cristo nascem de uma experiência viva (por isso, podem contar o que seria absurdo noutro contexto e noutro género literário: os de Emaús no princípio caminham com ele e não o reconhecem, vindo a reconhecê-lo ao fazerem experiência dele alertados pelas Escrituras). São a lógica consequência da percepção espiritual que a fé pascal teve e da experiência mística que os discípulos tiveram, sentindo que Jesus estava presente e operante nas suas vidas, a animá-las e a guiá-las (como se conta no livro dos Actos dos Apóstolos). Nomeadamente os relatos do sepulcro vazio, ao mesmo tempo que queriam confirmar a abalada fé dos discípulos, são um símbolo que, enquanto tal, aponta para uma realidade transcendente. Queria significar que seria errado procurar Jesus no mundo dos mortos, como seria impossível sepultar a Verdade numa tumba; que ele tinha morrido, sim, mas não era um morto, nem pertencia ao mundo dos mortos, nem ficava no lugar dos mortos; estava vivo em Deus. A vida venceu a morte: «Por que procurais entre os mortos aquele que está vivo? Não está aqui. Ressuscitou! Recordai-vos de como vos falou… Recordaram-se então das suas palavras» (Lc 24,5-6). Dele, o que restava agora era silêncio activo! Só podia ser escutado em silêncio, procurado na fé e visto com os olhos fechados como urgência que empenhava toda uma vida.
A ressurreição de Jesus põe ao vivo a questão sobre a transformação da carne de uma pessoa. É a contestação definitiva da morte, a confissão implícita de que a morte não reina sobre a vida pessoal. Quem reina é Deus e os que vivem por Ele e n’Ele. Tão grande verdade não se exprime no Novo Testamento com a linguagem abstracta. Diz-se em símbolos, gestos, narrações e na profissão de Paulo: «Onde está, ó morte, a tua vitória?… Graças a Deus que nos dá a vitória por meio de nosso Senhor, Jesus Cristo» (1Cor 15,55.57). A ressurreição não é um manifesto contra a morte (a morte não se combate). É a vida do Espírito dada por Deus que subverte as evidências procurando esvaziar o conceito de morte.