Armindo Vaz, OCD
Ainda no jubileu da esperança, voltamos a meditar nela.
Nas epopeias clássicas, pela acção dramática e representativa dos seus protagonistas (de Gilgameš na sua epopeia, de Heitor na Ilíada, de Ulisses na Odisseia, de Eneias na Eneida, de Dante em A Divina Comédia, de Vasco da Gama em Os Lusíadas, etc.), a esperança é um grande esforço da humanidade por vencer a sua contingência, os desafios, a vulnerabilidade, a precariedade que caracterizam a sua natureza. Na mais antiga delas (a menos conhecida), a mítica viagem de Gilgameš por mares tremendos até à ilha dos bem-aventurados em busca da imortalidade investe todo o seu desejo na esperança da vida sem fim. Em Os Lusíadas (canto V), a ultrapassagem do Cabo das Tormentas, renomeado Cabo da Boa Esperança, abre um novo caminho para a concretização da esperança no bom sucesso da viagem épica que imortalizava a glória de um povo. Mas todas coincidem em sentir a esperança como uma virtude profundamente ligada à consciência da fragilidade humana e à confiante espera de um futuro melhor. Também todas incluem a participação da divindade, que influencia de modo determinante a vida dos heróis. A esperança está na essência da epopeia: a epopeia exprime a tensão positiva e o carácter dramático da vida e da esperança, porque esta é posta naquele ou naquilo que é ardentemente desejado mas que não se vê e ainda não se tem (Rm 8,24-25; 2Cor 4,18; Heb 11,1); o drama está em que o objecto da esperança é necessariamente último. A epopeia valoriza a esperança como componente fundamental da experiência humana, que eleva o espírito dos heróis e os impele a superarem as dificuldades, a olharem em frente e a procurarem o sentido último dos seus feitos. A esperança não deixa que os heróis sejam subjugados pelos fenómenos da natureza e pelas medonhas forças irreconhecíveis do fatalismo e do trágico. Dá-lhes luta. E torna-se assim um princípio activo que orienta a vida.
Também a Bíblia inteira permite uma leitura da sua esperança em clave de epopeia. De facto, perante a inevitabilidade inquestionável da radical finitude da condição humana, procurou inspirar esperança à vida dando-lhe sentido último em Deus. Narrando a história de um povo desde a sua fundação pelos «pais», exala uma atmosfera épica, religiosa e profundamente humana. Abraão, o «pai» mais antigo e mais venerado, é posto em movimento pela palavra de Deus («sai da tua terra, da tua pátria e da casa do teu pai, para a terra que Eu te mostrar»: Gn 12,1), levando consigo só a esperança: «pela fé partiu sem saber para onde ia; pela fé, estabeleceu-se como estrangeiro na terra prometida» (Heb 11,8-9). Nas histórias dos patriarcas bíblicos, as decisões fundadoras – como em todas as epopeias – estão cadenciadas por intervenções divinas, que validam os factos em função de uma tese religiosa: um povo, convocado pelo “Deus dos pais”, busca uma terra para viver livre e feliz (Gn 15,18-20). Os «pais» são integrados numa história de fé e de esperança, que os ultrapassa e que aparece epicamente impregnada de um dinamismo interior: a esperança viva num futuro libertador. A história foi suscitando a esperança e a esperança fez história salvadora.
A epopeia do êxodo dos hebreus do Egipto para a “terra prometida” é a melhor representante desse género literário na Bíblia, encontrando depois na Eneida (19 a.C.) estreitos paralelos: como Eneias, já Moisés tinha conduzido um grupo da sua gente, atravessando o mar no meio de ingentes dificuldades (Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio), para a estabelecer e formar um povo numa terra que foi conquistada em luta bélica contra a população autóctone (descrita no livro de Josué). E também no êxodo bíblico, como na Eneida, a esperança enche a narração dos factos. A opressão dos hebreus na construção de obras megalómanas dos faraós visa epicamente gerar a consciência da necessidade de liberdade como bem gratuito sem alternativas reais: a incapacidade de a obterem por si mesmos abriu-os à esperança, vendo Deus a favor deles como único salvador possível. Onde se queria acabar com a esperança, aí nasceu a esperança miraculosa da libertação de Israel. A epopeia dos escravos hebreus arranca do clamor da esperança. A epopeia dos clássicos, de Gilgameš, de Ulisses, de Eneias, de Paulo nos Actos dos Apóstolos, do Gama, de Frei António de Lisboa desviado no mar para a Itália…, sulca os mares das dificuldades. A dos hebreus atravessa o mar Vermelho e incute neles uma esperança que os acompanhou na travessia do deserto do Sinai até à entrada na “terra prometida”. Como no mar encapelado de Ulisses em demanda da sua prometida ilha Ítaca, também no deserto, para o povo conduzido por Moisés, não havia nada entre a terra e o céu, a não ser a esperança: onde não há nada facilmente se espera vir a ter muito e melhor. À maneira das epopeias clássicas ocidentais, a narrativa bíblica, imbuída de densidade épica, apresenta os sentimentos e as emoções das suas personagens numa história de superação dos seus limites e da sua finitude radical.
A história da Ilíada tem continuidade na da Odisseia e na da Eneida. A Bíblia faz com que a epopeia dos heróis do êxodo na “terra prometida” continue com Samuel, com David, com os reis de Israel e de Judá…, até Jesus, filho de David, em quem a história épica da esperança bíblica teve o seu ponto culminante. Se alguém o quiser ver como herói vencido na cruz, pense que na realidade ele venceu o mal moral cravando-o na cruz e «expulsou o príncipe deste mundo» (Jo 12,31; 14,30; Ef 2,2). Os «que outrora estavam longe…, sem esperança e sem Deus no mundo, foram trazidos para perto pelo sangue de Cristo… De ambos os povos fez um só, derrubando o muro de separação e suprimindo na sua carne a inimizade» (Ef 2,12-18). O seu calcanhar de Aquiles foi a bondade, a ternura, a compaixão para com os humanos, revelando ‘um fraquinho’ pelos mais fracos da sociedade. Deu o conteúdo mais consistente à esperança bíblica, fundando, com a sua morte histórica por amor, uma «esperança que não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado» (Rm 5,5). O seguidor de Jesus é motivado, não pela imortalização heróica do seu nome mediante a fama, mas pelo salto para a transcendência por meio da esperança.
 
						 
							








