Frei João Costa, OCD

Convidaram-me os meus irmãos frades de Viana do Castelo a pregar a sua Novena do Carmo e eu aceitei. Com gosto. Falei primeiro cá em casa, com a minha comunidade, ponderámos, atempadamente, forças e falhas, organizámos os dias e as solenidades a que teria de faltar. E aceitámos.

Aqui deixo algumas notas sobre o ali vivido e o rezado.

1.           Fui levado a Viana pelo Frei Rui. Pelo caminho e para não falarmos só de futebol, instruiu-me sobre o povo de Viana, sobre o génio das gentes da Ribeira, sobre o denodo dos homens do mar e sobre a responsabilidade de, para além destes, falar aos homens e mulheres da Guarda Nacional Republicana. Faço notar isto: eles são iguais aos demais, é certo, mas apresentam-se fardados, garbosos, dignos, a rezar e a cantar à sua e nossa Padroeira. Comunhão, portanto. Dá gosto partilhar com eles a Mãe!

À chegada descarreguei, rápido, a trouxa, e ainda lhe perguntei se almoçava connosco. A casa não é minha, não é dele, mas em Portugal diz-se que enquanto o caldo está na panela chega para todos. Preferiu ir comê-lo na casa de familiares e fez bem, afinal não havia sopa na mesa.

2.           Atribuíram-me uma cela virada para o interior do claustro, donde quase não saí. A cela era abafada, mas abrir a janela era assunto que não se punha – tal era o calor durante o dia. Pedi uma ventoinha e não havia. A meia tarde, por magia, apareceu uma à porta. Estava nova e deitava-me ar para a cara. Não refrescava, mas a sensação era de que sim. Sobrevivi mantendo-a ligada, inclusive, de noite, ou em grande parte da noite – fiquei caro à comunidade.

Era tal o calor que tomava banho antes da Novena e, de novo, me refrescava no fim dela. Fiquei-lhes caro em água, embora o segundo banho fosse só para retirar o suor que me picava a pele. Não uso gel, mas sabonete; levei-o de casa, mas não digo quanto gastei para que o meu ecónomo não desmaie – a ignorância também salva. Se isto ler, ele que me perdoe como puder.

3.           Abrir a janela da cela para que o fresco da noite me beijasse a cara tem o seu custo – ao menos no Carmo de Viana: entram também os mosquitos. Fui a Viana, recordei Viana, gostei de Viana, mas também saí de Viana com gosto. Desculpem se vos incomodo (um poucochinho talvez): pela manhã o meu corpo parecia ter sido bombardeado, tantas eram as crateras pequeninas e vermelhuscas que a minha pele apresentava. Ao fim de dez dias de bombardeamentos sobrevivi, mas não volto lá sem mísseis Patriot! Ai não volto, não!

4.           O que me valeu foi aquela janela alta, qual abertura de imenso Céu. Ah, que porta aquela porta… Aquela janela de luz, aquela janela de glória, de paz. Não importava que o céu fosse farrusco ou pardo – importava que não fosse postigo, que ela abrisse para cima. E para baixo também. E em baixo eu contemplava um jardinzinho fresco, florido, bonito, terno – ah, que belas palavras me inspirou!; e uma oliveira que – foi em Viana que o aprendi – é o brasão duma casa; e também um sino cansado e fora de combate, mas imponente em seu silêncio, falando tanto como um mudo de mãos erguidas, diante do Santíssimo Sacramento!; e uma cruz-padrão, alta como um himalaia, obrigando-nos a sempre alçar o olhar para a glória. Sim, eu abria a janela e ela falava-me de voo, de céu, de anjos em júbilo. De quarto em quarto – um dos sinos deve estar rachado, Padre Nuno! –, uma badalada lembrava-me que eu ficava mais perto do Céu, mais perto, mais perto, uma hora mais perto do céu!

Graças a Deus!

(Em boa verdade, eu não sei como não vem mais gente para frade; rápido pensei eu que, se fácil não fora de vir, ou ainda não viera, me disporia a pagar para entrar, só para poder ouvir aquele sino, desde o lado de dentro, de quarto em quarto de hora, tangendo-me a alma e falando-me linguajar celestial!)

5.           Rezei com aqueles santos monges. São monges orantes e avançados, ultramodernos. Quando chega a Hora que, generoso, o sino dá, sacam do bolso o telefone, abrem a aplicação e cantam tudo. (E se é o frei Agostinho a presidir, cantam-se até as rubricas!) Eu usei um velho e desgastado breviário, pois não levara o meu para não pesar – afinal, os rompidos breviários em desuso jaziam todos em descanso à entrada do oratório e para algo haveriam de servir, claro; para peregrinos como eu.

Se o leitor faz parte daquele exército orante, perceberá o que a seguir vou dizer: quando se usam versões diferentes dos textos sálmicos, aquilo, por vezes, redunda numa pequena confusão babélica. Na verdade, era só eu que destoava, o que imprimia o seu quê de trémulo e desordenado à minha oração. O que me vale é que eu sempre me encomendo ao Santo Espírito quando início a reza.

Ainda tentaram baixar a aplicação litúrgica para o meu telefone, mas eu resisti. Devo ser antigo, pelo que é coisa em que não encaixo. Nem mesmo me convence que se possa rezar as Horas quando em viagem; para isso, lhes disse que quando em deslocações, eu faço como São João da Cruz: canto os salmos com os olhos, com o coração e a boca. E se os não canto inteiros como ele cantava, bato palmas ou danço nos versículos em que a memória me falha. E depois contemplo a natureza, os rios, os vales, os campos de milho, as vinhas de enforcado, os animais a pastar, os montes correndo velozes atrás de mim como carneirinhos, as nuvens, a luz do sol. Ah, a luz do sol…

Existe outra razão para não baixar a aplicação: ela só fornece a liturgia própria do dia litúrgico normal, isto é, sem atender às especificidades de cada família espiritual. Carmelita eu sou, caramba, por isso, não há santinho dos meus que eu não recorde e celebre – nem que apenas seja com a oração dfa colecta!, mas acontece que na aplicação oficial eles não fornecem o ofício de São Louis Martin e Santa Zélia Guérin, e eu gosto muito de os celebrar. Gosto mesmo muito!

6.           No primeiro dia da Novena puseram-me a casula às costas, para que eu entendesse que o serviço novenário era mesmo comigo. E era. Eu sabia-o, mas ainda, não assumira bem quão pesada poderia ser a responsabilidade. Mais para mais, toda a comunidade religiosa estava ali a ouvir e a rezar comigo; e depois, à mesa, comentavam-me os meus manquejamentos. Cheguei a lembrar-me do meu exame para a Primeira Comunhão que meu pai me fez (minha mãe rezava por mim) debaixo duma ramada, enquanto arrancávamos batatas… Não posso contar agora aqui essa estória; posso, sim, contar que no refeitório do Carmo de Viana me senti pequenino durante a Novena. E as batatas, apanhava-as, mas no prato…

E é mesmo verdade que à mesa comentavam tudo e mo atiravam, com caridade, à cara.

E pelo meio o Superior ia avisando que tinha enviado emails aos Párocos da cidade. E foi assim que pela Novena foram passando alguns párocos: o Padre Quintas, de 91 anos; o Padre Belo, de 86 anos; e o Padre Coutinho de 82. O leitor haverá de pensar que eles estão velhos e trôpegos, mas não eu. Esses três veneráveis, mais o Pároco da Sé, passaram por lá, e repetiram a dose, pelo que eu me via, sem querer, entre doutores; mas desta vez eles sabiam bem mais que eu! E fincavam as frontes semi-inclinadas nos braços ossudos como rijas escoras, e isso intimidava-me porque, sei lá se eu os estava a ajudar a caminhar para o Céu, se a afundar-se no barro! Sim, aquelas cabeças pesadas inclinadas sobre mãos, intimidavam-me. O que vale é que um deles, num dos dias do meio da Novena, puxou-me pela manga e me disse: – O senhor diz coisas interessantes, mas eu vinha à espera de o ouvir falar do Escapulário!

Logo eu descansei nas «coisas interessantes» e depois remendei, sem mentir, que como em Caná, o melhor vinho ficava para o fim. E ele veio ouvir até ao fim.

7.           Eu já tinha vivido em Viana do Castelo. Seis anos, nada menos! Mas seja em Viana, seja onde for, mantenho um defeito que não deve ser só meu: longe da vista e longe da memória, depressa esqueço os nomes das pessoas. É um defeito que lamento muito, mas não sei como resolver. Por isso, quando na Novena subi, pela primeira vez, ao altar encontrei um rebanhinho fiel e algo robusto – mais de setenta pessoas! Eram quase todas conhecidas, de rostos lindos, tão aprimorados quanto devotos. Claro, estavam todos doze anos mais velhos, pois os anos passam, afinal, por todos. E havia também alguns novos, não propriamente em idade; embora houvesse alguns fossem jovens.

Uma coisa sobremaneira me encantou: fossem novos, fossem velhos, valentes, todos cantavam, especialmente os hinos e os cânticos da Senhora do Carmo! E eu gosto disso, porque um povo com identidade, sabe encantar o coração, sabe cantar o que é seu, tanto o da terra como o do céu!

8.           E tinham um acólito. Chamava-se Henrique. Se não erro tem dez anos. Quero que saibam que, por vezes, os melhores celebrantes são os acólitos. O Henrique só faltou uma vez porque teve uma prova de judo. Ao ouvi-lo justificar-se no dia seguinte quase fiquei contente: um padre está no altar e é bom saber que está bem acolitado e bem defendido!

Mantenho que às vezes os acólitos são os melhores celebrantes, mesmo se distraídos como o Henrique. Ah, que bom celebrante é o menino. E depois, era mais nele que, durante a Novena, as velhinhas mais se infirmavam! E eu cá por mim, ficava descansado… Existe ainda outra coisa que me agradava no acolitozinho: quando procedia ao lavabo deitava-me água abundante nos pulsos, coisa que muito me delicia. Pena era que também me caísse nos pés. De todo eu não desgostei, enfim, mas como não dava para os enxugar… – Deus te perdoe, Henrique!

9.           A nossa espiritualidade carmelitana mariana é a mais perfumada. Gosto muito disso. Outras há que são mais doloristas, mais combativas, mais voluntaristas, mais misericordiosas, mais missionárias, mas ardentes,  mais fraternas, mais viradas para a conversão, mais pungentes e piedosas. Eu gosto da espiritualidade mariana do Carmo, porque é terna, suave, enamorada e levemente perfumada. Gosto muito.

Carmo ou Carmelo são nobres palavras hebraicas cuja transumância para o português nos coube a nós, Carmelitas; e que muito me dizem porque são antigas, bíblicas, com muito sarro – um doce sarro perfumado, diga-se; e por ambas dizerem: vinha florida ou jardim de Deus. Um ou outro dizer, encantam-me muito. A vinha florida é inebriante fonte de esperança, é (quase) certeza de vinho (e de alegria). E é perfume. O jardim de Deus é perfume e fragância, é encanto, é beleza, é tempero, é sinal de urgência de trabalho, de trabalho interior, de cuidado dos outros e de si próprio. É perfume perfumado.

Eu gosto do perfume que damos quando trabalhamos, quando ajudamos os outros, quando, desgastando-nos, suamos. Gosto de qualquer perfume, sobremaneira desse que fala do duro esforço que dá trabalhar o interior de cada um de nós, até fazermos dele um jardim agradável e prazeroso para Deus, para a Virgem e para os irmãos. Um jardim com uma fonte no meio, de preferência, claro.

10.        Doze anos é muito tempo. Por isso, com facilidade as senhoras (e alguns senhores) que todas as noites constituíam aquela interessante assembleia ultrapassavam os oitenta. Certo dia da Novena em que distribuía a comunhão pediram-me que fosse levá-l’A a um banco. Fui. Aproximei-me e a senhora, soerguendo-se a custo, endireitou-se. Ao levantar-se vi que tinha ao lado um andarilho. Não sei se fiquei mais surpreso, se mais preocupado.

No dia 15 à noite, saímos em Procissão de Velas – com «dois binómios à frente», dizia-me, ufano, o Padre Marco Caldas que tanto trabalhou para a festa! –. Fizemos o percurso de sempre. Coisa para bem mais de uma folgada hora – e não, não é por ir a rezar que, mormente para aos velhos, o caminho se torna mais levadeiro! Eia, pois, qual não é o meu espanto, quando, à saída da Procissão, vi a velhinha e o seu companheiro, digo, o seu andarilho, ao fundo da igreja! Pensei: queres ver, Frei João, que ela vai na procissão! Não ia, não foi. Ficou ali, no último banco. Quando reentrávamos, ela lá estava. «Fiquei a rezar», disse-me ela, consolada, quando, no regresso, me inclinei sobre o seu rosto.

Na hora, só me consegui lembrar de Moisés, já velho, engelhado e roído das artroses, rezando no cimo dum monte, com os braços levantados, enquanto Josué e os israelitas combatiam, cá em baixo, os amalecitas. Josué me senti eu por uma noite, assumindo, que sim, enquanto corremos e labutamos existe uma indesistente igreja velhinha e cansada que reza por nós, para que não cansemos nem desistamos.

Obrigado.

11.        Quem me conhece sabe que tenho uma ternura enorme por Simone Weil (1909-1943). Nascida judia em Paris, era, como a sua família, agnóstica. Aos 15 anos obteve o bacharelato em filosofia e algures depois, mesmo frágil de saúde, fez-se operária metalúrgica nas fábricas da Renault. Por causa da condição precária dos operários tornou-se pugnaz sindicalista, para os defender. Era cristã, mesmo sem ser baptizada porque, dizia, «sempre adoptei como única atitude possível a atitude cristã. Por assim dizer, nasci, cresci e permaneci sempre na inspiração cristã. Claro que sabia que a minha concepção de vida era cristã. É por isso que nunca me ocorreu que poderia entrar no cristianismo. Tinha a impressão de ter nascido no seu interior». Tinha, em função dessa concepção, um certo pudor em entrar numa igreja, «apesar de me sentir bem lá dentro». Porém, era mística à altura e com a profundidade duma Santa Teresa ou dum São João da Cruz. Como mulher mística encontrou-se várias vezes com o Crucificado, clave do seu conhecimento e porta da sua alegria interior que jamais a separou da massa dos desventurados; um desses encontros deu-se nas Caxinas, perto de Vila do Conde. A coisa passou-se assim: em setembro de 1935, Simone estava a passar férias em Viana do Castelo com seus pais. Os pais hospedaram-se no Hotel Santa Luzia, no monte que domina Viana. Por sua vez, Simone optou por uma modesta pensão, em baixo, na cidade. Dando umas voltas pelas redondezas, no dia 15 de setembro desceu às Caxinas, Vila do Conde, onde naquele dia, domingo, se celebrava a Senhora das Dores. Simone Weil tinha então 26 anos e deixou-nos o relato do que viu naquela aldeia portuguesa; diz ela: «as mulheres dos pescadores faziam um percurso em redor dos barcos, em procissão, empunhando círios e entoando cânticos, decerto muito antigos, de uma tristeza dilacerante». […] «Nunca tinha conhecido nada de tão pungente, a não ser o canto dos barqueiros do Volga. Aí tive, repentinamente, a certeza de que o cristianismo é, por excelência, a religião dos escravos, que os escravos não podem senão aderir a ela, e eu entre eles».

Sublinho aqui o que ela mais tarde repetirá: essa adesão à «religião dos escravos» – ou seria das viúvas, infindas servas do amor? – à qual também ela inteiramente se entregou, não fora jamais uma imposição esmagadora que lhe aniquilasse a vontade, mas uma doçura que lhe respeitou «a liberdade total e o direito de tudo negar».

Sempre, enfim, me impressionou essa amorosa deposição abissal de Simone, essa impressão datada e tão crua do catolicismo português. Ora aconteceu que, no dia 12 de julho, no Carmo de Viana, celebrámos a eucaristia da Novena pelas e com as gentes do mar, mormente por quantos, entre as Caxinas e Vila Praia de Âncora, o furibundo mar tragou. Vieram muitos pescadores, inteiras famílias sorridentes e uma mãe viúva de dois filhos afundados numa traineira feita ataúde ou berço final; caxineira toda ela, vive sepultada no luto vai para mais de vinte anos. Ao ver a infinda crueza do seu luto nas algas dos seus olhos de mãe, nas da sua alma, do seu coração e das suas mãos pequeninas e desamparadas, a mim também me deu vontade de chorar. Abençoei-a com um beijo de padre e de filho, porque percebi nela a insaciável servidão de Simone Weil à fidelidade do amor. E concluí para mim: sinceramente não sei se alguém tem direito a resgatar esta mãe do seu negro fundo luto; mas também é verdade que numa pessoa só, eu jamais vi um abismo tão fundo e tão negro de lágrimas desistentes, um sepulcro tão intenso, como aquele naquela tarde do meu quinquagésimo oitavo aniversário.

12.        No início da noite do dia 15 houve Procissão. Acendemos as velas no umbral do lusco-fusco e cantámos cinquenta Ave Marias só no primeiro mistério, mais cinquenta nos outros quatro! Original, sem mal. A procissão foi trabalhosamente grande e todos gostaram que assim tenha sido: os do Carmo, os do Bairro do Jardim, os da Ribeira, os da Senhora de Fátima, o comando territorial da GNR. Todos.

No fim houve copo d’água. Cumprimentei conhecidos. Veio um casal e disse-me: – «há tanto tempo que não nos víamos! E olhe que eu não podia faltar à procissão! Vim com a roupa de trabalho e tudo! Nem banho tomei!». Só então reparei que estava todo empoeirado; e eu que o julgava pintor, dei-me de caras com um operário cheio de pó de pedra e com botas de trabalho! Simone Weil teria gostado. Eu gostei! A Mãe também.

13.        E no dia 16, dia da Padroeira, de joelhos, de pé e a cantar a fé, o zelo e o serviço, deslumbrados, eu vi também todos os gênêerres!

Graças também por isso, ó Bom Pai! Ámen.