Frei João Costa, OCD
- Por especial solicitude do Papa Francisco, este é o Domingo da Palavra de Deus. De facto, é aos domingos que, maiormente, abrimos o coração à Palavra de Deus que se faz ouvir nas nossas assembleias; e por isso, não depreciando outros modos e maneiras, é ao domingo, em assembleia reunida, que Ela mais nos atinge. Em cada eucaristia dominical escutamos (e até cantamos!) quatro porções da Palavra: a Primeira Leitura (habitualmente retirada do Novo Testamento) e o Salmo Responsorial pelo qual a Assembleia responde e medita sobre a mensagem daquela leitura; a Segunda Leitura (retirada do Novo Testamento, excluindo os Evangelhos), e um excerto dos Evangelhos. De notar ainda, que frequentemente a Primeira Leitura antecipa o tema que se proclamará no Evangelho; ao passo que a Segunda Leitura é de mensagem mais autónoma.
- Por não me centrar, como habitualmente, no Evangelho deste III Domingo do Tempo Comum, Ciclo C, permita-se-me uma parábola, ao jeito das que Jesus costumava contar às suas gentes:
- Iam por certo caminho dois homens. Um era coxo; bastante, coxo, aliás. E o outro, cego. Totalmente cego, diga-se. Apesar das penas e fragilidades de ambos, lá caminhavam juntos, mais trôpegos e diligentes que direitos e assertivos. Tanto tempo caminharam juntos, que se fizeram amigos. Não é que tudo lhes corresse bem – pudera! –, mas que apesar de tudo, apesar de alguns desentendimentos e casmurrices lá se iam entendendo. E não era por isso que se separavam.
(Sei que até aqui todos me entendem, e que até podem concluir quem possam ser esses dois… Adiante, portanto!)
Ora, sucedeu, que depois de muito caminharem juntos, por muitos caminhos e muitos lugares, depois de terem passado por muitos sacrifícios e dificuldades, alegrias também, frios e fomes, calores e perigos, sucedeu, pois que, em certo dia, se achegaram a um tramo de caminho especialmente desafiador e difícil. Era a subir. Tanto a subir que o coxo – o que via o caminho, entenda-se! – logo sentenciou que seria impossível ultrapassá-lo! Disse o coxo:
– É tão pedregoso este caminho, que eu não vejo sítio em que ponha os pés! Se ponho o pé aqui, caio para ali! Se os ponho além, entorno para acolá! Portanto, amigo, é aqui que tudo se acaba! Eu não prosseguirei, que aqui nem as muletas me servem para amparo algum!
– Como não prosseguirás, indignou-se o cego?!
– Além disso, continuou o coxo: este é um caminho estreito e com um precipício de cada lado! Se eu me desequilibrar, caio por aí abaixo e… adeus, coxo! Nunca mais nos veremos. Nem talvez no céu!…
– Quem falou em cair pelo precipício? Quem falou em parar, em desistir? Quem falou tal à minha beira? Cruzes, credo! Quem falou em desistir, foste tu, coxo?
– Fui eu, sim, fui eu, repetiu o coxo! Eu sei o que é o medo! Eu tenho muito respeitinho pelo caminho, e pelos perigos e, além disso, gosto muito da vida! Por isso, eu não subirei! Vai tu se quiseres!
Pronto, lhe volveu o cego:
– Amigo, desistir é coisa para os fracos! Ter coragem, seguir em frente, vencer os perigos e chegar à meta, é para os fortes! Eu seguirei!
Rindo-se-lhe na cara, logo lhe contestou o coxo de forma desdenhosa:
– E falou o cego que é cego! Sobe, pois, por aí, ó cego, tu que não vês nem um boi à tua frente! Dá tu o tal passo em frente, e talvez sejas o primeiro a cair e a perder-te! Ainda não te deste conta disso? Pois é!… O nosso caminho acaba aqui: eu sou coxo, não consigo equilibrar-me; tu és cego, não consegues desviar-te dos perigos! E agora, amigo meu, capice?!
Mas o cego que o era, e sabia-o, mas não era burro, logo sem demora lhe respondeu:
– Caro, coxo! Às vezes, fecham-se-nos as portas diante de nossos passos, e ao fecharem-se, abrem-se janelas; isto é, abrem-se-nos novas oportunidades, mas de outra maneira. Concordo que ambos estamos em situação complicada! Sozinhos, nem tu, nem eu, subiremos este caminho das pedras, pelo que temos de voltar para trás – o que não é solução – ou cairmos no abismo, o que também nenhum de nós quer.
– Estou a ver que, além de cego, és inteligente, ironizou o coxo, que não estava a ver nenhuma janela abrindo-se-lhe diante do olhar!…
– É mesmo isso, meu caro, respondeu o cego! É mais ou menos isso, sim. Eu sou cego, mas vejo uma solução! Tu não és, mas não vez alguma! Reparaste no paradoxo? Não te apetece a ti rir, como a mim?
– Eu tenho raiva e só me apetece chorar! Mas, fala lá, ó Einstein, disse-lhe o coxo, já mais que aborrecido e cansado com aquela conversa toda!
– Pois falarei, ó cabeça dura, respondeu-lhe o cego! E tu, ouve-me com ouvidos de gente, não de cabra tonta; com as devidas licenças às cabras e seus dignos maridos! Tu, ouve-me, ó franganote: Olha para mim e que vês? Sou um touro, mas sou cego! Logo sou fraco e, sozinho, paro aqui. Mas tu, franganote, tu vês, és o único que aqui vê, mas como és coxo, não irás longe! O que te proponho é o seguinte: valorizemos aquilo que nos acrescenta, não aquilo que nos diminui a ambos!
Logo lhe desabafou o coxo:
– Agora, sim, agora é que eu me arrependo de te ter conhecido, ó taramela de filósofo! Não percebi nada do que estás praí a falar!
– Anda cá, meu burro, disse, carinhoso, o cego ao coxo! Anda e sobe aqui para as minhas costas, que eu confio nas minhas pernas e nas minhas forças! E também confio na tua visão para me orientares. Ora se tu me guiares bem, com calma e serenidade, juntos, sairemos, deste enorme desafio e, juntos, nos salvaremos! Confia em mim e eu confio em ti! Aceitas que, juntos, nos poderemos sair bem? - A verdade, amigos, é que, agora mesmo, eu não sei quem aqui seja o cego e quem aqui seja o coxo: se quem escreve ou se quem lê o texto; ou se, segundo os dias e as circunstâncias, intercambiamos entre nós os papéis. O que sei é que na vida – mais ainda na vida da Igreja – precisamos uns dos outros: os fracos precisamos dos fortes, os capazes dos cegos; os calados dos animadores, os sonhadores dos aventureiros. Os pecadores dos santos.
Precisamos uns dos outros, pois ninguém chega lá sozinho – essa é a verdade. Ninguém jamais se basta a si mesmo! Jamais! A perna precisa do pé, a boca da mão, o ouvido do nariz. Não nos bastam os solos, precisamos também da harmonia coral. Precisamos, enfim, de amigos que também precisam de nós, porque nenhum de nós é completo, ninguém se basta, que até o forte alguma vez merma e se volve fraco.
Estamos todos a caminho com o Evangelho no coração; mas caminhando, rezamos juntos e fazemos pausas nos hospitais e nos albergues, lemos testemunhos e documentos, avaliamos forças e estrelas, ponderamos novas etapas, novos rasgos, novas soluções, novas sementeiras e respostas. – E se acaso, além de pararmos, voltamos atrás para amanhã mais nos abalançarmos para a frente! – Hoje como ontem, precisam os velhos da audácia dos novos, e os novos da sabedoria e tempero dos velhos, tal como os campos precisam das sementes e das chuvas, e as sementes do sol e que o trabalhador as esparza e depois recolha.
Estamos todos a caminho e ninguém ficará sem alcançar a meta. Se um lá não chegar, será derrota de todos, inclusive de Jesus! E eu tenho por certo que, vindo como veio, não veio para que perder algum!
Precisar, precisamos uns dos outros, que precisar é verbo que anima e salva.
Ninguém é só. Ninguém cresce só. Ninguém se salva sozinho! Somos comunhão, mesmo se o não sabemos. Por inteira virtude que a nós não cabe, somos um. Um corpo. Ninguém se salva só – por isso, chegará o dia em que quando um rir, rirão todos; e se algum chorar, choraremos todos. É que não se salvam partes, salva-se o corpo todo, porque ninguém, nenhum parcial, tem todos os dons, todas as graças, todas as virtudes, todas as forças, todas as luzes, todo o humor, todo o amor. Sim, para se caminhar e se chegar ao fim sempre precisamos de alguém. De todos. Porque a mão pertence ao pé, e a orelha à cara, enfim, todos nos pertencemos e, ao fim, todos chegaremos juntos!
Ah, que inesperado espanto um dia passaremos ao descobrir o tanto que devemos a tantos que nunca, ou não apreciamos, ou não vimos nem conhecemos! - Disto me alembrei quando, celebrando o Domingo da Palavra de 2025, dei de chofre com a leitura de 1Coríntios 12:12-30. Valeria a pena ir verificá-la.