Frei João Costa, OCD
1. Os nomes são como as setas da rosa dos ventos – apontam sempre para algo, uma luz, um lugar. Uns sabem-me a terra, outros a imensidão maior. Por exemplo, para mim Teresa sabe-me a terra, a terra dura, a terrunho fértil, e a bastião de fecundidade. Miriam, Maria e Mariam cheiram-me, por sua vez, a maresia, e soam-me a imensidão de mar e de céu – não sei o que outros sintam, comigo é assim.
Reparei também que os nomes, de resto como os apelidos, se associam às linhagens familiares, embora não tanto como estes. Um exemplo: Na minha tribo as Corinas estão todas na mesma família, passando de mãe para filhas e netas, de madrinhas para afilhadas. As Irenes e as Cândidas também: cada uma segue o fio do sangue familiar. Já as Sameiro são recentes e estão sobretudo no Norte, por razões óbvias; Norte é um agregado de tribos, uma quase naçom, daí que se compreenda a eleição. Já não me parece o mesmo com as Fátimas, nem com as Lurdes, as Carmo, Carmen e Carminho, e as Franciscas, cujos nomes mais lhes advêm das simetrias espirituais que da raiz e da voz do sangue. Mas lá está, uma espiritualidade tem o seu quê de territorialidade.
No Carmo e no Carmelo é também assim, mas mais neste que naquele. O que quero dizer é isto: nos carmelos é frequente encontrar muitas Teresas, ou muitas irmãs de Santa Teresa. Nos carmos já não é tão comum encontrar Joões, ou frades de São João da Cruz, mas também os há. O que estranho haveria de ser era encontrar algum de São Domingos ou de São Francisco, mas nunca fiando, que a criatividade é muita.
Se o leitor e a leitora sobreviveram até aqui, sei que poderão estar prestes a mudar de página. Mas talvez o não devam fazer porque, tal como aponta o título, do que aqui quero falar é de palavras e de Teresas. Antes de lá chegar, porém, dizer-vos que na família de Teresa e de João da Cruz as Teresas são mesmo muitas. Também entre as santas, a começar pela mãe que de Ávila é (+1582); e além dela: Teresa Margarida do Coração de Jesus (Florença, 1770); Teresa de S. Agostinho (Paris, 1794); Teresa do Menino Jesus (Lisieux, 1897); Teresa Maria da Cruz (Florença, 1910); Teresa de Jesus dos Andes (Los Andes, 1920); Teresa de São João da Cruz (Guadalajara, 1939); Teresa Benedita da Cruz (Auschwitz, 1942). E as que já vêm a caminho…
No Carmelo, parece-me, Teresa é um programa único: ser santa. E de facto, tantas são iguais no nome, todas seguindo o Caminho, e por fidelidade a Quem as chamou, nenhuma igual a outra.
2. Falemos, então, de duas Teresas, visto que por razões diversas o ano de 2023 é seu. Uma é mãe, outra filha. Uma é águia, outra, pardalito. Uma, velha (morreu quase aos 68 anos), outra, jovem (morreu aos 24). Uma, generala, outra, soldado de caserna sem ir a combate. Teresinha viveu quinze anos na família, nove no carmelo; Teresa viveu vinte na família, vinte e sete de monja, e outros vinte como mãe da família que gerara. Teresinha não conheceu mais que duas casas: a familiar e o carmelo de Lisieux; Teresa, muitíssimas mais: o solar paterno, o carmelo de Encarnação de Ávila, e outros quinze que fundou (e os palácios das amigas, em que houve de restar, por obediência, durante meses…). Por tal razão, no último período da sua vida de águia, o seu mosteiro era andante, em cima de uma carroça puxada por bois; ao passo que, por sua vez, o pardalito apenas contemplou o quadrado de céu que a justa generosidade dos claustros lhe concedia.
Quem conhece ambas monjas, as duas ama; quem não, ama a que conhece – o mais das vezes só a filha (e ignora olimpicamente a Fundadora, o que é quase um erro de lesa-fé!).
Visto que só se ama o que se conhece, em Portugal ama-se Teresinha, a filha, ignora-se a mãe Teresa. Mas não é por se saber que ela é filhinha de quem é que se lhe apõe o diminutivo no nome; é mais por causa daquele infantil e belo defeito nosso que é o de diminuir carinhosamente o objecto do amor como se lhe quiséramos dar colo; e também porque ela mesma a si se chamou Florzinha.
Há pouco mais de quinhentos anos nasceu a mãe perto de nós, em Ávila, cidade que daqui dista quinhentos passos. A filha, mais longe, em Alençon, Normandia, no norte de França, há cento e cinquenta anos, e para lá chegar são precisos o triplo.
Não há como esconder: Teresinha, a filha, está no coração dos portugueses; Teresa não. O facto condicionante, creio, é a distância temporal entre nós: a filha é quase nossa contemporânea, a mãe, não. Não se esqueça, porém, que a grande é a Grande, e a pequenina é a Pequenina. E não vem daí nenhum mal ao mundo e até todo o bem.
Mas vamos às efemérides:
Teresinha nasceu no dia 2 de janeiro de 1873, pelo que em 2023 passam cento e cinquenta anos do seu nascimento; e cem anos da sua beatificação (29 de abril). Quem a ama faz do presente ano um longo e feliz dia de aniversário. Pudera!
Por sua vez, este mesmo ano de 2023 (com início já no pretérito março de 2022) é também significativo, pois que nele se celebra o Quarto Centenário da Canonização da mãe Teresa, que até é ano jubilar na sua basílica construída sobre o quarto em que nasceu.
Por quais acrescidas razões, este ano de 2023 tanto bole com o nosso coração de carmelitas? Por muitas, pois nunca é demais celebrar a santidade dos amigos de Deus, neste caso, das amigas!
Vejamos algo mais:
De Santa Teresa disseram ser a maior mulher da história da Igreja depois da Mãe de Jesus! De Santa Teresinha, que é a maior santa dos tempos modernos! Duas santas, mãe e filha, águia e pardalito, e que santas – as maiores entre as maiores! A primeira é mãe dos espirituais; a segunda, irmã dos missionários. Como não celebrá-las gozosamente, portanto?
Mas há muito, muito mais. Ambas são Doutoras da Igreja. Teresa, a primeira (1970), Teresinha, a última (1997). Santas Doutoras tem sabor a lança metida no país dos púlpitos. Ser doutora quer dizer ser formadora, tanto de homens como de mulheres, ao longo e ao largo da roda do planeta. Repare-se mais uma vez: são mulheres falando em secular território de varões. Mulheres que ensinam; mulheres cuja palavra é sólida, evangélica e missionária. Sem subir a cátedra, e até contra a vontade varonil, elas ensinam gerações a fio. E quando por ser mulher mais obstava que ensinasse, Teresa ensinou. Ensinou pecadores e santos, filhas e filhos, frades e padres, bispos e papas; e leigos, desde as gentes da rua aos comerciantes, da pequena nobreza rural aos nobres das chancelarias e aos reis – todos feitos filhas e filhos seus! E o que é mais: Teresa gostava de ensinar por se sentir impelida pelo Espírito a fazê-lo – lá tem Deus os caminhos só seus! Teresinha, mais discreta, menos óbvia, mas igualmente ardente – facto que de si não dependia – também ensinou. Escreveu cartas, mas não tantas como a mãe. Poesias e peças de teatro, q.b. E uma autobiografia que por tão universal nos fala como se nos falassem os pés de Jesus; digo: como se escrita fora – de joelhos, como Maria – aos pés do Mestre, e sob o Seu olhar terno e misericordioso.
Mãe e filha são doutoras improváveis. São inesperadas surpresas do Evangelho que o Espírito continuamente nos oferece; e são janelas de luz que se abrem para nos dizer que todo o segredo da vida cristã é ser-se de Jesus.
E são apóstolas indefetíveis. Em seu tempo, a pé ou de carreta, uma rilhou o pó dos impenitentes caminhos – ou seriam calvários? – castelhanos; outra teria gostado de ter percorrido toda a terra para plantar a cruz de Cristo – curiosamente foi esta, e não a primeira, a eleita como Padroeira dos missionários!
Plantar cruzes mundo fora bem pode ser o mais belo acto missionário; porém, regar flores não é menor nem menos fecundo. Uma e outra bem sabem quão tanto hoje urge o odor salvífico, quer o que provém do primeiro como do segundo acto.
3. A arenga poderia continuar insistindo nas inevitáveis diferenças entre estas duas grandes mulheres santas. Porém, quanto mais as distinguirmos menos as afastamos, e mais elas se aproximam – os extremos tocam-se, que é o que se passa com a paleta de cores: nenhuma dispensa alguma, cada qual sobressai na comparação com outra. Porém, e porque o texto tem de fechar, feche-se relevando-se duas palavras, uma de cada qual, em jeito de imperfeita síntese: amigos e confiança. E uma terceira, caminho.
Amigos é palavra eleita de Teresa, confiança, de Teresinha. Caminho é de ambas, como se sabe.
Nada jamais Teresa fez sem amigos – nem mesmo para sair de casa paterna aos vinte anos, sob o amparo dos véus da madrugada! Por isso, sobretudo nos seus últimos vinte anos de vida, noite adentro, tantas cartas escreveu (15.000? 20.000?). O audaz empreendimento humano e espiritual de que Deus a encarregara fê-la esperar tudo dos amigos, incluindo do próprio Deus, o seu maior! Por meia sardinha a conquistavam, confessa ela, mas também é verdade que por igual porção de simpatia igualmente conquistava ela os corações mais improváveis. A gentil Teresa é grácil e atraente, e sabedora como ninguém de como cuidar e engolosinar as amizades. Sabe e não ignora que a amizade exige lhaneza a toda a prova e nunca máscaras, e trato frequente – e assim cuidou ela de ser, tanto com os da terra como com os do céu.
A amizade é para si um valor tão grande que jamais a dispensava, tanto pelos caminhos e pousadas no trato com os carreteiros, como nos salões com as senhoras nobres, ou diante do tabernáculo, com Deus. E considera-a obrigatória na oração. Sim, que na oração ela sempre falava (e ensinou a falar) como se fala com um amigo, sem ademanes nem fingimentos, visto que onde há amizade os amigos estimam-se tal como são, não como se espera que sejam.
Tendo Teresa vivido num tempo tão récio e belicoso, muitos ainda hoje se espantam com o seu tão entranhável trato amigo com Deus: sim, o seu diálogo com Ele é um trato de amigos, mas amigos mesmo – e não é que ela reparou, desde a primeira hora, que é Ele quem diz: «Vós sois meus amigos»? Porém, com sempre lembrava, a amizade Dele não é a de um amigo ocupado com picuinhices, antes pré-ocupado em atrair-nos para uma intimidade tão íntima quão salutar. E reforçava: «ninguém jamais tomou a Deus por amigo que ele não lhe pagasse»; e justificava por experiência própria: «sim, que nunca Deus me pediu um trabalho que logo não me tenha pago».
Nada jamais Teresinha fez sem confiança. Se muito, se pouco, o que fez foi tendo por peanha a confiança. Olha-se a sua vida, e o que mais nos surpreende é a dureza do seu longo inverno que a beleza da sua primavera em flor – como tanto sofreu aquela criatura, quer na infância, quer na juventude; e como tão cedo morreu expelindo secreto sangue pela boca, e restando cravada por dores horríveis à cruz em forma de cama, nela jazendo de alma ferida pela dúvida de saber se se salvaria!
Mas tanto nas dores como nas dúvidas, bem mais superior a elas era a sua confiança.
Grande drama é, nos dias de hoje, o sofrimento. Julgamo-nos construídos para só sorver doces alegrias e deliciosos sunsets, mas é tudo tão passageiro que, pronto, os sofrimentos nos assaltam como ultrajes – pelo que os tememos mais que aos inimigos invencíveis. Então, o que logo mais lamentamos é não podermos ser eternos no nosso despeito e na denúncia do escândalo perante tal ferrete.
Mais que a pele bronzeada o que em nós é permanente é a ferida. Também em Teresinha, já mesmo desde tenra infância. Como ignorar o rasgão da sua alma provocado pela morte da mãe? Como não lamentar e com ela chorar a perda das duas mamãs substitutas? Podemos nunca ter visto nem enxugado tais lágrimas, mas em boa verdade, qual é a criança que sobreviveria à perda em tão pouco tempo de três mães? Eu olho para a ineludível ferida ou rasgão provocado na alma de Teresinha por tais perdas, e vejo que, em tão dolorosa fragilidade, ela se deixou tocar pela luz ao aceitar abandonar-se como uma criança nos braços de Deus – suspeitará, alguma vez, um bebé dormente ao colo do pai, que ele o possa deixar cair, ou que o abandone numa rua escura longe de casa? Não, tal bebé confia inocentemente, cegamente, no pai. E apesar de, desde cedo e durante os seus parcos dias, o mistério do sofrimento lhe ter sondado as raízes da alma, como poderoso leão, Teresinha preferiu confiar sem desanimar. Confiar sempre, sempre, sempre.
Se Teresa é amizade, Teresinha é confiança, pois tinha ela toda a certeza, e desde ela vivia, de que o que mais ofende a Jesus «é a falta de confiança» Nele.
4. E, finalmente, uma palavra comum às duas Teresas: caminho. Na verdade, o da Grande chama-se caminho de perfeição, e o da Pequenina, Caminhinho.
Um e outro são vias para a santidade, que ambas não falam nem sabem de outra coisa.
A proposta do caminho de perfeição de Teresa é o tal «trato de amizade» com o amigo, Deus – isto é, a oração. Em linguagem de Teresa, tratar é lidar frequentemente com alguém – ora já se sabe, nisto como em tudo, o que sempre mais e mais rápido se aprende é o que entra pelo coração. Para o bem ou para o mal, o que mais rápido se a-prende é aquilo que um amigo já ama, não o que ainda se não conhece. De facto, parece-me óbvio que se se ama o Amigo, logo se passa a gostar e a amar, mesmo sem querer, o que Ele já gosta e ama. (E se duvidar, faça a prova…)
O segredo do caminho é, pois, saber escolher o amigo, porque este nos levará pela mão às fontes do conhecimento! Às boas, se o amigo é dos bons; às óptimas e aos melhores deleites, se Jesus! Ou às más…
Igual ardor de perfeição e de santidade identificamos em Teresinha. Mas não lhe chama ela caminho, antes sim, caminhinho, que também ela queria ser santa, mas por rápido e bom caminho. Mas por sentir-se impotente até nas coisas mais miúdas, e por descobrir-se, em consequência, incapaz de vencer no caminho, escolheu não deixar-se vencer no ímpeto e na vontade. Isto é, entre o não desistir de ser santa e a impossibilidade de o fazer por forças próprias, Teresinha aprendeu (e assim nos ensina) a aceitar abandonar-se nos braços de Jesus, qual elevador que, grátis, nos eleva para o céu! Parece fácil, mas quem hoje quer abandonar-se, privando-se a si mesmo de conduzir o carro ou a trotinete da sua existência? Sim, poderá parecer fácil, mas o caminhinho do abandono não é desleixo ou passividade, antes um deixar-se amar a todo o momento, mesmo quando se escorrega e cai. O abandono é um deixar-se amar, deixar-se lavar e deixar-se elevar…
Ah, e já se sabe qual é a paga que amor exige – amá-lo. amar o amor, como quão quase nada é o caminhinho de Teresinha!
Perfeição, caminho e santidade, doutra coisa não falam as Teresas. «A perfeição – diz a filha – consiste em fazer a vontade de Deus». Ora se para alcançarmos o que Ele quer que cada um seja é para cada qual tão difícil como transpor um degrau tão imenso como uma parede, o que, por fim, nessa situação Ele mais espera de nós é que jamais nos desalentemos perante o impossível, nem jamais vacilemos ou desistamos de subir, porque rápido chega o momento em que, vencido, Ele nos venha buscar e nos suba ao colo para o céu!
E lá saberíamos nós pedir mais?