1. Egino Weinert era um orante; a oração saía-lhe em forma de arte. Qual é a arte de rezar do Carmelo de Aveiro?
A arte de rezar do Carmelo de Aveiro é a arte da relação com Deus, isto é, a arte de «estar muitas vezes a sós, tratando de amizade com quem sabemos que nos ama», como diz Santa Teresa; ou, se quisermos evocar o Evangelista João, a arte de sermos amigos de Cristo Jesus, deixando que Ele nos dê a conhecer os segredos do Amor que existe entre Ele e o Pai: «A vós chamo-vos amigos porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai».
A arte de rezar não se confina ao âmbito do Carmelo. O papa Francisco dizia que quando rezamos estamos a abraçar o mundo, os homens e mulheres do nosso tempo, quem quer que sejam. E nós não só pretendemos abraçar esta Humanidade como, essencialmente, fazer com que cada leitor possa abraçar a Cristo e estabelecer com Ele uma relação de amizade, que cada um possa escutar de Cristo Jesus: «Chamo-te amigo porque te dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai».
A proposta de leitura orante que fazemos para cada vitral [da capela do Carmelo de Cristo Redentor] é simples: numa página apresentamos o vitral para a contemplação do leitor, seguidamente o texto bíblico que ele representa e uma breve interpretação do vitral, fazendo confluir o fundamento bíblico e a dimensão artística. Depois apresentamos uma proposta de leitura orante que pretende implicar o leitor no mistério de Cristo que o vitral representa levando-o a fazer a sua própria leitura. Concluímos com uma oração que sintetiza o que pode ser o fruto do encontro com Cristo através daquele vitral. Também aqui o objetivo é que cada um possa falar a Cristo coração a coração.
No seu prefácio, o Cardeal Tolentino de Mendonça tem um parágrafo que sintetiza muito bem o que o Carmelo de Aveiro pretende. Escreve: «A presente obra, que publica os vitrais da Vida de Cristo na Capela da Comunidade das Carmelitas Descalças do Carmelo de Cristo Redentor em Aveiro, emerge nas nossas mãos como um desafio espiritual. Ela oferece-nos um prisma para olharmos toda a vida de Cristo por meio da inspiração do artista Egino Weinert (1920-2012). Mas para se ser testemunha de Cristo não basta apenas conhecer narrativamente a sua vida completa, é preciso os olhos da fé, garantida pela via da contemplação e da oração: esta é a chave de leitura que nos faz ver a identidade divina na sua identidade humana, à semelhança de um vitral. Sem luz, este não é percetível.»
2 Se não nos pudermos recolher em oração, como poderemos rezar um vitral ou uma pintura ou uma imagem de uma igreja?
Nunca podemos perder a consciência de que a plenitude máxima da pessoa que somos — e de qualquer pessoa — está em sermos seres orantes, pessoas capazes da relação com Deus; uma relação dinâmica chamada a atingir a união com o próprio Deus. E isto é o próprio Vaticano II que o afirma.
Movendo-nos neste horizonte percebemos que há muitos momentos em que este recolhimento não é possível, porém, a imagem, a pintura ou o vitral, não deixam de invocar o mistério de Deus no seu todo.
A cada um de nós é dado como dom a porta de entrada para o mistério, uma porta que é uma parte do mistério, que nos permite entrar em comunhão com Deus, e que é só nossa e que faz com que haja a pessoalização do mistério. Esta porta de entrada pode ser, por exemplo, a Anunciação, o Deus Menino, a Cruz, a Eucaristia, a Ressurreição, enfim, uma porta de graça em que entrando por ela, vamos sempre encontrar a presença de Deus no que temos diante dos olhos. Há sempre a evocação da presença de Deus e há sempre a nossa capacidade de invocar o Espírito Santo para nos fazer ver o novo de Deus, presente ali. É o campo da simbólica.
Exemplifico o que digo com um exemplo que nos pode ajudar a perceber a novidade da presença de Deus nas coisas e através delas.
Um destes dias, numa circunstância um pouco inusitada, fui convidada a escutar a música You Raise Me Up, interpretada por Josh Groban. A poucos instantes do início, no meu interior ressoaram as palavras de Jesus: «Quando eu for levantado da terra atrairei tudo a mim» (Jo 12, 32). Era aqui que eu estava levantada nos ombros de Jesus e os ombros de Jesus coincidiam com os braços da Cruz. Estava levantada pelo amor com que Jesus me tinha amado e me estava a amar, a ponto de transformar a minha existência em mistério de salvação. Dos braços da cruz onde repousavam os ombros de Jesus eu via a minha vida como Ele a via, cheia de luz. E deste ser levantado da terra, desde a cruz, segui para um outro ser levantado que fala o profeta Oseias 11, 1-4: «…Eu os atraí com laços de bondade, com cordas de amor. Fazia com eles como quem levanta até ao seu rosto uma criança; para lhes dar de comer, eu baixava-me até eles». Já não era apenas o amor de Jesus, agora era o amor do Pai. Era o conhecer-me como esta criança levantada até ao rosto do Pai, levantada pelo amor até ao conhecimento do Pai.
Na realidade, o cantor continuava a cantar, enquanto o Espírito rezava no meu interior. A música com a sua letra e melodia invocaram em mim uma presença de Deus que constitui a minha terra sagrada, faz parte da minha identidade religiosa. Contudo, para mim, a música não é preciosa pelo que ela é em si mesma, mas pelo que evoca de mistério divino.
Existe ainda outra forma mais simples de rezar um vitral ou uma pintura ou uma imagem de uma igreja, quando não nos podemos recolher: trata-se de partirmos desde a consciência de beleza.
Deus entrega-nos a sua Beleza que reside no dom que nos faz de Si mesmo. «A Beleza é um dos nomes de Deus». E o Espírito Santo é uma das mãos da Beleza em si, que comunica o esplendor da santidade e se revela como «Espírito de beleza».
A renovada liturgia pós-vaticana é um âmbito de manifestação dessa luz, já que presa pela simplicidade e pela autenticidade do espaço, que deixa o Espírito falar ao coração. Essa presença do Espírito, como presença de beleza, é poesia sem palavras, é música sem sonoridade. É apenas Luz, pois o atributo mais conhecido do Espírito Santo é vida e luz.
Deus sempre se manifestará através da sua Beleza.
3. Na página 47 do livro aparece escrito: «Quase que somos forçados a ver, para contar o que os nossos olhos viram…». O que veem os nossos olhos nos vitrais do Carmelo de Cristo Redentor?
Num primeiro momento devemos dizer que no Carmelo de Cristo Redentor vemos um conjunto de vinte e um vitrais que representam a vida de Cristo. Eles estão dispostos em cinco sequências de quatro vitais cada uma, segundo a fase da vida de Jesus que representam. Na entrada da capela podemos encontrar a primeira sequência que começa com a Anunciação. Dando a volta à capela, terminando no presbitério com a sequência dos mistérios da Ressurreição ao Pentecostes, não esquecendo o Tomé, que nos representa também a nós. O próprio movimento de disposição dos vitrais faz-nos sentir em peregrinação com Cristo. O cardeal Tolentino de Mendonça que colaborou connosco, escrevendo o prefácio do livro, diz que: «Em tempos de um certo empobrecimento espiritual, estes vitrais apresentam-se como uma catequese tácita para aqueles que têm sede de Deus, que O procuram no silêncio ou que apenas esperam o seu sinal».
Mas, os nossos olhos veem para além do que veem. À medida que nos adentramos nos vitrais e vamos seguindo as realidades históricas e circunstanciais da vida que representam, vamos dando conta que há uma realidade que emerge e se sobrepõe ao que de facto estamos a ver. É o primado da graça que surge de forma tão bela e luminosa, quase impercetível, mas que nos faz passar da realidade visível para a invisível, transpondo-nos para o mistério da presença de Deus. Quando contemplamos os vitrais verificamos que eles não estão fechados em si, que se transcendem de forma dinâmica, envolvendo-nos nesse dinamismo de graça. Cada um deles evoca a força criadora de Deus e é precisamente esta evocação que nos transporta para o primado da graça, porque a última palavra pertence a Deus; a Deus que faz novas todas as coisas. É algo que o artista consegue fazer passar de si, do seu amor a Deus, da sua vivência da fé, e da sua espera confiante e abandonada, da sua oração, para cada vitral. Na realidade, cada vitral é oração viva do artista, podemos ter a perceção do artista estar a rezar para nós. E é algo que nos fascina porque não só nos põe dentro da relação do artista com Deus, mas lança-nos para a nossa própria relação de comunhão com Deus e com o mistério da Sua presença na vida.
Na prática, diríamos que cada vitral objetivamente diz: isto aconteceu assim, mas Deus interveio e converteu isto em história de salvação e nesta simplicidade, entre linhas, traços e cores, manifesta-se o absoluto de Deus. Depois da leitura orante do conjunto dos vinte vitrais, facilmente, a presença de Deus na sua amorosa força criadora invade o nosso interior fortalecendo a nossa fé e fazendo-nos olhar para a vida mais além das circunstâncias e obstáculos, colocando-nos num dinamismo de espera confiante desta palavra que Deus diz e que unifica a nossa vida, dando-lhe um novo sentido, enchendo-a da graça da Sua presença. Sempre o primado da graça sobre todas as coisas e a experiência de estarmos em Deus, na Sua presença.
e 4. Lendo a biografia de Egino Weinert percebe-se que se perdeu um monge e se ganhou um artista. Mas não se perdeu um orante. A arte é oração?
Sim, a arte pode ser oração, mas quero ser mais ousada e afirmar que a oração é uma verdadeira arte, em que o Artista é Deus. Muitas vezes esquecemo-nos que Deus reza e que nós somos oração de Deus. Deus reza em nós, reza no nosso templo interior, mas a Sua oração manifesta-se na nossa vida, no que vivemos, na pessoa que somos. Estamos pouco despertos para o facto de sermos o lugar onde Deus reza e a nossa vida ser oração de Deus. Poucas vezes paramos para nos perguntarmos: hoje, o que é que Deus rezou em mim?
Na verdade, Deus reza-Se em nós. E a Sua oração é muito simples. Em cada um de nós Deus reza: «Tu és meu filho, eu hoje te gerei». E é sempre assim, Deus reza Cristo em nós, para que cheguemos a ser verdadeiramente seus filhos, filhos no Filho. A configuração com Cristo é a grande oração que Deus Pai reza em nós, em todos nós.
A grande novidade da oração de Deus está na segunda parte do versículo: «eu hoje te gerei» – trata-se da individualidade de cada pessoa e do mistério da Palavra que hoje Deus pronuncia/reza em nós. Conhecer o que hoje Deus reza em nós é o grande desafio da arte da oração e o que pode fazer da arte uma oração. O desafio da nossa fé. Deus reza em nós o mistério de Cristo, conhecer este mistério só é possível com os olhos do amor iluminados pela inteligência da fé e sustentados pelo abandono confiante da espera em Deus.
Este é também um dos desafios do encontro com Cristo proposto na leitura orante dos vitrais, o descobrirmo-nos como oração de Deus e chegarmos a conhecer o que Deus reza em nós, o dom que Deus nos faz de Si em Cristo. Esta é a verdadeira arte da oração e nesta simbiose a arte é verdadeiramente oração.
Isto é algo que transparece na relação de Deus com Egino Weinert. Ao contemplar a acção amorosa de Deus na vida de Egino, a oração que Deus rezou nele, o que de facto ressalta não é que tenhamos perdido um monge, mas a fidelidade de Deus ao desejo que incutiu no coração de Egino desde toda a eternidade: servir Cristo, traduzindo o Evangelho na sua própria arte.
Deus foi fiel a este desejo de forma profética, tirou um possível monge do anonimato dum mosteiro e duma corrente litúrgica com um determinado estilo, para transferiro monopólio da arte sacra dos mosteiros para o âmbito laical. Estamos perante o primeiro leigo a ser convidado por um Papa, S. Paulo VI, para ter as suas obras no Vaticano.
Weinert foi o artista que, até ao momento, mais cruzes fez em todo o mundo. Deus rezou de tal maneira neste homem que fez dele uma oração viva e o lugar de oração para muitos. Deus cumpriu a promessa que tinha feito a Egino: servir Cristo, traduzindo o Evangelho na sua própria arte.
Nas palavras do prefácio o Senhor Cardeal Tolentino aborda a questão da relação entre arte e oração e o que isto pode exigir de cada um de nós. Deixemo-nos interpelar por elas: «Nas vésperas de celebramos os 1700 anos do Concílio de Niceia (325-2025), a obra surge como um pequeno “tratado de cristologia”, que reaviva em nós o dogma cristológico definido neste Concílio. Sim, porque os dogmas não são apenas para serem acreditados, mas também para serem vividos e contemplados. E Niceia aponta-nos uma condição transversal: todos somos filhos de Deus (Gal 4,4-5). Esta consciência filial esclarece-nos uma das primeiras regras da oração: orar como filhos, como aqueles que sabem que não são a origem de si próprios e que dependem de outros e de um Outro para existir. A oração tece-se com esta humildade e a humildade tece a coreografia da oração».
Ao terminar a peregrinação pela capela do Carmelo somos convidados a louvar a Beleza de Deus, que Egino Weinert nos fez saborear, através do seu desejo de servir a Cristo e o Evangelho com a sua própria arte, e aceitar o desafio de nos deixarmos iluminar pela Luz que é Cristo e nos tornarmos reflexos da Beleza de Deus, pela acção do Seu Espírito de Beleza:
Senhor,
Eu amo a beleza da Tua casa,
O lugar onde reside a Tua glória.
A beleza que tu encerraste dentro de mim
E que és Tu mesmo.
Tu escolheste-me para Tua morada,
Para ser Templo onde celebras
O memorial da Tua santidade,
Como são verdadeiras
As Tuas palavras:
«Eu habitarei e andarei no meio deles.
Serei o Seu Deus e eles serão o meu povo».
Tu habitas em nós
E andas connosco.
E nada mais há a desejar,
Do que ser Teu
E entrar no santuário que construístes
No íntimo do nosso ser,
O lugar onde reside a Tua glória,
E cantar as maravilhas do Teu Amor.
Porque o Templo de Deus é Santo
E nós somos esse templo.