Armindo Vaz, OCD
Aquela que a liturgia cristã chama Semana Santa é a última da vida histórica de Jesus. Os cristãos dão-lhe relevo celebrando os principais mistérios da vida dele, acompanhando-o nas suas últimas horas. Ponto culminante do ano litúrgico cristão, ela é o tempo privilegiado para o aprofundamento/vivência da fé. Como nenhum outro – por ser rico em símbolos, pela Palavra que propõe à escuta das pessoas, pela meditação no sofrimento e na morte e pela exposição da vida ao risco da ressurreição – coloca-nos nas margens da salvação, isto é, do sentido pleno a dar à vida. Intensifica-se no Tríduo Sacro.
A Última Ceia de Jesus com os discípulos é a hora da mais densa tomada de consciência do sentido da sua vida e da sua morte: da vida dada (“tomai e comei; isto é o meu corpo [= isto sou eu], que será entregue por vós”) e da morte antecipada (“este é o meu sangue, que será derramado por todos”). Os poderes da noite que tramam a sua eliminação do reino dos vivos reduzem o tempo para manifestação das emoções de despedida. O amor, como ninguém, percebe a importância do tempo. Quem ama intensamente sente ter tudo menos tempo: daria tudo em troca de mais tempo para amar. Jesus sente que já não tem muito mais, para revelar e dar mais: “pouco mais tempo estarei convosco”. Diz e faz o essencial: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 13,33-34). A sua vida apresenta-se como um quadro perfeito, sem esboço, porque resultava do amor perfeito. Já dele tinham dito “no auge da admiração: fez tudo bem feito” (Mc 7,37). Agora é o amor que dá todo o realce à sua Páscoa: “antes da festa da Páscoa, Jesus, sabendo que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao extremo” [até dar toda a sua vida para cumprir o plano salvífico do Pai] (Jo 13,1). Assim encheu as medidas do existir humano, que estão não no tempo que dura mas na vida que oferece.
“Fazei isto em memória de mim”. Fazer memória era fazer história. Era recordar, no sentido etimológico de trazer de novo ao coração aquela ceia puxando-a para o presente, reactualizando o seu poder libertador para cada geração de discípulos, como se cada um tivesse participado nela, dando-lhe assim valor perene. O memorial festivo da narrativa autêntica, ligado ao desejo e à busca de imortalidade, celebra e realiza hoje a ceia histórica de então.
A ceia remetia para o drama da cruz, prenunciando-o. O caminho que Jesus percorreu carregando a cruz desde o pátio de Pilatos até ao Calvário foi o mais curto mas também o mais intenso que ele terá feito. Foi a síntese da sua vida, o caminho da cruz, a via crucis, o caminho da vida, o caminho para a morte programada pelo mundo que não o compreendeu. Na cruz, o mais célebre injustiçado da História, tratado em vida como Mestre, deu a sua ‘última lição’ de uma alta cátedra. Nunca o seu discurso tinha sido tão elevado: poucas palavras, eloquente intensidade de gestos, longos silêncios, sofrimento assimilado pelo amor, perdão para os algozes sem acusação, consciência do alcance dessa morte, oração ao Pai, atenção à mãe dando-lhe outro filho para cuidar (“Mulher, aí tens o teu filho”) e dando-a como mãe ao discípulo (“aí tens a tua mãe”: Jo 19,25-27). É a lição do Homem por excelência, do Homem verdadeiro, que revelou a verdade de Deus e a verdade do homem: “Eis o Homem!” (Jo 18,5). Lição de alcance universal: “Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37).
Sujeitando-se activamente à violência até à morte, Jesus desvelou de forma suprema o amor de Deus pelo homem. O Pai assumiu em si a dor do mundo e rejeitou a maleficência cravando-a na cruz do Filho: manifestando-se contrário àquela morte inocente, identificou-se com o grito das vítimas deste mundo pelo amor que o move, pelo Amor que Ele é: “Nisto manifestou-se entre nós o amor de Deus: em que Deus enviou ao mundo o seu Filho único, para vivermos por ele” (1Jo 3,9). Desde a morte de Jesus como vítima inocente, todos os actos de violência humana se estilhaçam reprovados na imagem do Homem crucificado. E porque a cruz levantava um homem que aparecia como imagem visível do Deus invisível, nela se quebram todas as imagens desfocadas e convencionais de Deus (a do Deus justiceiro, castigador, que pode livrar duma pandemia, ou a do Deus omnipotente da espiritualidade imatura e adolescente), porventura pouco artísticas. A mais autêntica “palavra da cruz” (1Cor 1,18) não é a do sofrimento e da mortificação dolorista: é a do amor – amor crucificado – de um Homem que ama os homens apontando para Deus; é a palavra de joelhos que compreende que o verdadeiro Deus é um Deus capaz de sofrer até morrer pelo homem, um Deus impotente, só omnipotente no amor. Foi diante da cruz que o pagão centurião romano confessou: “Verdadeiramente este homem era filho de Deus” (Mc 15,39). Só se conhece o excesso do amor de Deus quando ele se reconhece na lição total do Jesus da cruz.
E o amor tem sempre consequências à sua altura. Em Jesus, a maior consequência do amor dele e do Amor do Pai por ele foi a que o Novo Testamento chama ressurreição. Ela abriu um caminho novo. Tão novo que o desconhecemos. Mesmo que Jesus “falasse dela abertamente” (Mc 8,32), ela não tirava o mordente à morte. Os seus discípulos “discutiam entre si o que era isso de «ressuscitar dos mortos»” (Mc 9,10). O que sabemos é que nos convida e chama, entre a forte atracção que suscita e as indeclináveis dúvidas que provoca sobre a nova forma de vida que ela inaugura. Para dela falar, a linguagem humana é inapta. As questões que nos põe, ligamo-las ao físico, ao corpóreo, ao experimentável. Tendemos a pensar que o real se reduz ao fenoménico ou empírico: «se não vi, não existe!». Mas a linguagem do Novo Testamento sobre a ressurreição de Jesus significa acima de tudo que a sua vida e a sua morte tiveram sentido, para ele e para “os seus irmãos” (Heb 2,17): pelo modo como viveu uma e outra (vivendo para as pessoas e morrendo pelas pessoas), a vida em comunhão com Deus deu sentido à morte e a morte com Deus deu sentido à vida. Assim, a ressurreição quer dar sentido a uma vida que dê sentido à morte e que evite em cada vida o desespero perante o pensamento de uma morte aniquiladora, fim de tudo.
A ressurreição não quer ter poder no crente só depois de morrer: a fé e a esperança nela querem sobretudo fecundar de bondade e encher de sentido a vida do crente já aqui e agora, também preparando-o para o momento da morte e para escutar de Jesus: “Eu vos ressuscitarei no último dia [o da sua e o da nossa vida]”. Aleluia!