Armindo Vaz, OCD

Há três meses saiu a público a 2ª edição, revista e aumentada, do livro Criação divina sem pecado humano (Paulinas; Prior Velho 2024), que simplifica uma nova interpretação da chamada «história de Adão e Eva» em Génesis 2-3, interpretação que agora a lê no seu contexto cultural, literário e religioso próprio. Um dos frutos desta nova leitura é contribuir para a purificação da imagem de Deus e mostrar que não faz sentido acusá-lo e responsabilizá-lo pelos males contingentes que nos atormentam. Dizemo-lo, não em tom de confrontação com os que procuram Deus na noite da fé, mas em diálogo afectuoso e desejavelmente construtivo, até porque as desfigurações da imagem de Deus resultavam também da própria mentalidade tradicional cristã, que ao longo dos séculos, muito devido ao peso e à ressonância da doutrina dogmática do “pecado original” na espiritualidade, na catequese e na consciência dos crentes, fez vingar também uma atitude pessimista na sociedade perante a vida e o mundo natural. O escritor Arthur Adamov até reclamava que o nome de Deus não deveria brotar mais da boca dos humanos: é uma palavra gasta pelo uso [!] e desde há muito tempo já não significa nada, estando totalmente vazia de sentido, desprovida de sangue – pensava ele.

Soa, pois, a urgente limpar o rosto de Deus dos mal-entendidos com que o deformámos, para nos libertarmos a nós próprios dos eventuais danos colaterais à nossa psicologia e das incoerências que turbam a fé ou o religioso. É urgente abandonar a visão de Deus composta com os nossos pressupostos, aquela que não passa de um ídolo erigido pelas nossas figurações nas aras das nossas feridas, dores e limitações. O deus captado ou subentendido pelas leituras enviesadas da também chamada (inadequadamente) «história do paraíso terreal» como sendo um deus castigador, cruel e sumamente injusto não é Deus: não é o verdadeiro Deus transcendente que a fé bíblica põe em acção nas narrativas de criação e com o qual se deveriam entender os que são confrontados com o mal. Poderá ser o grande Inquisidor ou o grande Legislador que, segundo as crenças de alguns, tudo definiu e predeterminou de modo fatalista (o fado!) no começo do mundo. Ou será até, segundo outros, o grande Controlador de tudo o que acontece no mundo; ou o supremo Relojoeiro que outros imaginam como tendo posto a máquina deste mundo a andar e a mantém em funcionamento, dentro do chamado Desígnio Inteligente (alinhado com o criacionismo, falacioso). Outros poderão equipará-lo porventura ao supremo Justiceiro que caprichosamente (então injustamente) mata quem lhe apetece ou quem merece (!) e não livra da morte quem deveria livrar. Mas a crença num deus assim gera ateus de marca maior. Se a percepção desses traços impróprios da imagem de Deus foi um factor decisivo para acontecer a descristianização do Ocidente ou para se debilitar a fé, em boa verdade eles não são atributos do Deus representado nas narrativas bíblicas de criação. Delas, pelo contrário, emerge a imagem inoxidável de um Deus transcendente, omnipotente, origem, essência e estrutura de todas as coisas e da humanidade – sem aparecer como a causa directa, factual, do mundo. O Deus que é visto pela fé bíblica a criar o mundo é aquele que dá sentido último a tudo o que existe, a tudo o que é, a tudo o que acontece.

Imprescindível para perceber essa finalidade das narrações bíblicas de criação é descobrir, pela sua análise literária, que elas contam as origens, não o começo físico do mundo e da humanidade (que deve ser explicado pelos cientistas). Não são o filme ou a fotografia do começo do mundo. São radiografia do que se conhecia no presente, para o transfigurar à luz do divino. São contemplação do mundo por parte da fé e convite a contemplá-lo na sua beleza e na sua grandeza. Relacionam-no com o sagrado, fundo último das coisas, em que tudo cobra sentido. Também não são mera ficção. São ‘história’ verdadeira, cuja verdade está especialmente no facto de não ser de ordem historiográfica mas de ordem humana e religiosa. Para encherem a vida de sentido, fazem-na remontar às suas origens, atribuindo-a a um acto criador de Deus. Quem entender os relatos de criação divina à letra como produção material das coisas transforma a lua no dedo que aponta para ela e tem de pagar caro o preço de desfigurar a mensagem desses relatos; e a linguagem conotativa deixa de remeter para o transcendente que ela sugere: petrifica-se e morre. A linguagem da fé nas narrações de criação não é a da história ou da ciência. Nem se opõe à razão. Interage com ela e vai além das ciências, abrindo janelas para o divino. Insinua que a verdade das coisas e dos factos e o mistério da vida são mais profundos do que aquilo que a linguagem conceptual consegue dizer. As narrações de criação, com a fé que as fecunda, re-presentam, tornam presente ao “coração o essencial, o invisível aos olhos” e o Inefável enquanto criador das coisas: por isso imaginam Deus a criá-las. Cruzando o natural com o sobrenatural, sugerem que a vida é significativa e preciosa. Para sublimarem a vida actual, fazem-na remontar ao original, pela linguagem figurativa.

A leitura ingénua de textos sérios não é útil a ninguém. E só faz sorrir Deus, embora nos turbe a sua imagem. Amigo da verdade é quem continua sempre a procurá-la, não quem pára depois de a ter encontrado.