Armindo Vaz, OCD
Os salmos bíblicos, oração que brotou de um povo ao longo de uns 800 anos, também foram a linguagem usada por Jesus para pôr a sua alma em oração. Foi por eles que Jesus se expôs e se exprimiu diante de Deus. Morreu murmurando um versículo do salmo 31,6: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Assim, hoje podemos rezar com as mesmas palavras com que Jesus rezou. Porque os salmos foram expressão da vida real de tantos orantes, são vida em movimento, olhar do coração para o lado e para o Alto, oração do salmista mas também de milhões de orantes até Jesus e de biliões de pessoas desde Jesus até hoje. Foram compostos em oração e para serem rezados. São palavra de Deus feita palavra de oração a Deus. São o canto do homem que torna a Deus, orientando a história para a eternidade, porque vêem o Eterno na história.
O conjunto de todos eles representa os melhores orantes bíblicos até Job e até Jesus. E o essencial da profundidade da sua espiritualidade está no facto de nos porem a «existir diante de Deus» (Revista de Espiritualidade 30, nº 118 [2022] 127-142), de fazerem a alma ter sede do Deus vivo (Sl 42,1-6) e ansiar por ver o seu rosto: «O teu rosto, Senhor, eu procuro; não escondas de mim o teu rosto» (Sl 27,8). Mas a infinita necessidade de Deus sentida pelos salmistas seria menos verdadeira se subestimassem a importância do ser humano, o real e potencial orante. Ora, o que neles se verifica é que, longe de o subestimarem, o humano está sempre no outro pólo da procura do ser de Deus. Os salmistas partilham muitas das inquietações da Bíblia sobre o ser humano, onde ele é constantemente tema polar e motivo condutor da longa sinfonia que soa ao longo de toda ela: ela faz aparecer Deus à procura do Homem e o Homem à procura de Deus. Este é procurado e querido como indispensável por aquele e para dar sentido último à sua existência – se não, quem o daria? A preocupação do salmista pelo ser humano não incide só na sua existência; incide também na sua razão de ser e no seu fim. E são também diferentes as perguntas que sobre ele põe. Estas polaridades estão ilustradas, por exemplo, no salmo 8. Depois de se entusiasmar exaltando o ser de Deus com admirações contemplativas («Ó Senhor, Senhor nosso, como é admirável o teu nome em toda a terra!»), o orante concentra-se no ser humano e na relação dele com Deus: «Que é o ser humano para te lembrares dele, o filho do homem, para com ele te preocupares? Fizeste dele pouco menos que um ser divino». Igual pergunta – à procura – põe o salmo 144 sobre o humano, mas agora para olhar para a sua contingência: «Senhor, que é o homem, para te preocupares com ele? Que é um ser humano para pensares nele? O homem é semelhante a um sopro; os seus dias são como a sombra que passa» (144,3-4). Por baixo das carências que o salmista exprimia na oração, passava subtilmente a contingência existencial do ser humano face a Deus, como dizendo: para quê te esmeraste tanto com a alta perfeição de uma nuvem passageira? para que serve preocupares-te com o ser humano se, afinal, é como um sopro? Na realidade, porém, o salmista, professando a transitoriedade da condição humana, afirma simultaneamente a vontade de Deus se relacionar com o Homem pelo simples facto de existir; apesar de ser como a sombra que passa, é obra de arte digna da maior atenção, na individualidade única de cada pessoa, na capacidade de pensar, de comunicar e de se alegrar, na empatia e na compaixão para com outras pessoas. Faz-lhe eco S. João da Cruz: «Un solo pensamiento del hombre vale más que todo el mundo» (Ditos de luz e amor, 34).
Para o salmista, a oração não era apêndice da vida. Era sangue que corria nas veias, emoção que enchia as suas entranhas de israelita salvo. Era uma resposta de confiança em Deus, acreditado, aceite e escutado como libertador dos humanos: «Feliz o povo cujo Deus é o Senhor!” (Sl 144,15). Era uma atitude de humildade, porque quem orava com os salmos sabia que se integrava numa boa onda de graça: «O Senhor é excelso, mas repara no humilde» (Sl 138,6).
Por isso, a recitação dos salmos e os salmos em si sempre fizeram parte da paisagem humana, cultural e religiosa do povo que viveu na sua carne a audácia dos seus versículos. Cada israelita «nascia com os salmos nas entranhas» (A. CHOURAQUI, Le Cantique… suivi des Psaumes [PUF 1970] 83). Vivia-os como os cantava: «Louva, ó minha alma o Senhor! Hei-de louvar o Senhor na minha vida e cantar ao meu Deus enquanto existir» (Sl 146,2). Nos últimos três séculos a.C., os salmos já estavam e ficaram para sempre pegados à língua e ao paladar do povo bíblico como o espírito ao corpo, como a sombra à luz, como a voz ao canto. E sempre suscitaram atracção, pela sua força inspiradora, pelo fascínio poético e pela beleza espiritual, o desmedido que entra na medida.
A emoção lírica da sua palavra alavanca para a esperança mesmo os atormentados por uma guerra ou visitados por uma pandemia, ao verbalizá-las: «os inimigos, Senhor, acabaram em ruínas para sempre» (Sl 9,10); «não temerás a peste que alastra nas trevas nem a epidemia que devasta em pleno dia» (Sl 91,6). E oferece sentimentos de piedade, de entrega e de confiança em Deus, que aliviam agora outros orantes.