Armindo Vaz, OCD

Todos os dias a Igreja na liturgia eucarística invoca Deus com o atributo de omnipotente. É fundamental para a fé: um deus não omnipotente ensombrá-la-ia. Mas esse atributo é frequentemente problematizado, incompreendido, acima de tudo quando o associam ao mal no mundo. Como lida com ele a Bíblia, testemunho privilegiado da revelação divina para a fé judaica e cristã?
Quando vê Deus como omnipotente, contempla as suas acções libertadoras, tendo quase sempre como pano de fundo a experiência humana e espiritual do êxodo de Israel, que atribui a Deus a libertação da opressão egípcia, considerada humanamente impossível (Ex 14,11-14). Para a fé israelita só Deus podia realizar tão grande maravilha: “Algum deus tentou alguma vez vir buscar para si um povo do meio de outro povo com provas, sinais e prodígios…, com mão forte e braço estendido, com terríveis portentos, como fez em tudo por vós o Senhor, vosso Deus, no Egipto, diante dos vossos olhos?” (Dt 4,34). A fé que viu Deus a libertar Israel para lhe dar uma pátria também O viu a fazê-lo regressar do exílio da Babilónia, num autêntico novo êxodo para a pátria amada: “Aí vem o vosso Deus; aí vem o Senhor…; vem com poder e o seu braço assegura-lhe a soberania” (Is 40,10). Portanto, a omnipotência de Deus alinha com a sua salvação, tão sobre-humana que é equiparada a um acto de criação (Is 43,1; 44,2). Deus é visto como omnipotente no amor pelo povo: a omnipotência de que faz gala exerce-a a favor dos débeis, pobres, oprimidos e em forma de perdão. Por isso, o Novo Testamento não receou dizer que o poder de Deus culminou na extrema indigência de Jesus crucificado (1Cor 1,17-25). Foi nela que se manifestou o seu supremo amor, confirmado na ressurreição do Filho. E nesta aparece em que consiste a sua omnipotência: não é de ordem física, empírica, mas da ordem do Espírito e do amor. Quando a fé põe Deus na vida e O vê como omnipotente, também quer dar fundamento e conteúdo à esperança.

Somos assim convidados a abandonar a ideia de um Deus-mago e a assumir a imagem do Deus-mistério que dá sentido ao universo e que teve o ponto culminante da sua revelação na Encarnação em Jesus, desde a sua concepção até à morte. Na cruz de Jesus, Deus foi despojado, humilhado, esbofeteado, insultado por “salteadores crucificados com ele”, desafiado a mostrar-se um Deus intervencionista: “Salvou outros; que se salve a si mesmo se é o Messias de Deus, o Eleito” (Lc 23,35); “salva-te a ti mesmo se és filho de Deus e desce da cruz…; é rei de Israel; que desça da cruz e acreditaremos nele; pôs a sua confiança em Deus: que o salve agora, se verdadeiramente o ama, pois disse ‘sou filho de Deus’” (Mt 27,38.40-44; Mc 15,29-32). Mas se Jesus descesse, entraria na lógica do espectáculo pedido: se na morte fizesse ilusionismo, a vida teria sido uma ilusão. A cruz não mente nem deixa mentir: é o esplendor da verdade nua e tira dúvidas sobre a identidade do filho de Deus. “Aquele que viu dá testemunho; e o seu testemunho é verdadeiro; e ele sabe que diz a verdade, para que também vós acrediteis” (Jo 19,35). A cruz foi produto da traição, de Judas. Jesus transfigurou-a em atracção: “Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Condenado por todos os tribunais à época (Sinédrio, Herodes, Pilatos e o povo), rei ridiculizado por uma humanidade insensível, morre de amor na nudez humilhante, trespassado por cravos e uma lança lancinante. Mas “contemplarão aquele que trespassaram” (Jo 19,37), fazendo assim nascer o cristianismo “da contemplação do rosto do Deus crucificado” (cardeal C. M. Martini).

Este rebaixamento, mistério envolvente, diz muito daquilo que Deus não é e daquilo que Ele é. Não é omnipotente no sentido de milagreiro que dê espectáculo à vista. Quem quiser “ver para acreditar n’Ele” terá de o ver na fé nua, como um Deus que, sem deixar de ser o que é, se identifica com aqueles a quem salva. O relato da sua paixão pela humanidade entretece as duas linguagens que tecem a vida e que todos compreendem: a dor e o amor. É um Deus ferido de amor e de humanidade. Em Jesus sofredor, identificou-se particularmente com os mais vulneráveis. É enquanto tal que permanece no coração da história e que terá de ser procurado; não a descer espectacularmente da cruz com Jesus mas a lavar os pés aos discípulos e a dizer-lhes: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 13,34). E será encontrado, não a vingar os que o mataram mas a perdoar-lhes (é notável que Jesus peça perdão ao Pai para os seus algozes, quando ele tinha todo o poder para lhes perdoar: Mt 28,18; Lc 5,24; quereria significar que matá-lo a ele excedia todas as medidas do inumano?). Se alguém quer ver Deus omnipotente ponha os olhos em Jesus crucificado impotente. É acima de tudo na cruz de Jesus enquanto lugar de amor sofrido que se compreende em que consiste a omnipotência de Deus: nela pode abraçar toda a humanidade salvando-a. Não salva da cruz, salva na cruz com Jesus. A identificação de Deus com o Filho e só com a bondade revela-o próximo, presente aos humanos, embora sob a forma de ausência, a chamar do interior dos acontecimentos e das pessoas. A sua bondade, vinda da cruz, do alto, é transcendente: só precisa de ser acolhida para ser omnipotente.