Armindo Vaz, OCD
Orar é para a Bíblia o mesmo que filosofar é para a ciência: é a sua essência. É uma forma de ver melhor e de potenciar as mais finas possibilidades de ser e de existir. Orar engrandece o orante, ao introduzi-lo no Mistério que o envolve. Exprime a voz da alma que poucos conseguem silenciar. A Bíblia, que, pelo menos desde o séc. X a.C. até ao séc. II d.C., cresceu entre o humano e o divino, não seria ela própria se não pusesse o leitor a rezar: só realiza a sua essência abrindo-o à Transcendência. Liga-o com a outra vertente do mundo que anela. A um dado momento do desenvolvimento pessoal fá-lo sentir necessidade de se pôr de joelhos diante do Deus da vida. Os seus salmos, que fazem convergir a terra com os céus, são testemunho disso: suscitam irrupções do sagrado no mundo humano e elevam o orante para o Mistério, Presença comunicada. Na Bíblia, a oração torna mediatamente presente o Deus imediatamente ausente. Das suas páginas eleva-se frequentemente o espírito humano em oração: «Seduziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir» – reza Jeremias (20,7). Moisés tinha ousado mais: «Disse ao Senhor: Sim, este povo cometeu um pecado gravíssimo: fizeram para si deuses de ouro. Agora, porém, ou perdoas o seu pecado ou então apaga-me do livro que escreveste» (Ex 32,31-32). Mas há um livro bíblico que eleva ao ponto culminante a oração antes de Jesus surgir no horizonte da história de Israel: é o livro de Job.
Depois da introdução em prosa (1,1-2,13), o poema central (3,1-42,6) desenrola-se quase todo em oração. O protagonista dirige-se frequentemente a Deus, quer em solilóquio reflexivo («Que é o homem, para que tanto o engrandeças / e ponhas nele a tua atenção?» (7,17), quer em grito inflamado (“Sabes bem que não sou culpado; / mas não há quem me livre da tua mão”: 10,7), quer em forma de desafogo que acusa intempestivamente Deus pelo sofrimento injusto do homem: «As flechas do Todo-poderoso estão contra mim, / o meu espírito bebe o seu veneno; / contra mim armam-se os terrores de Deus» (6,4). Por vezes, a sua oração torna-se questionamento provocante diante de Deus: «Por que não deixas de olhar para mim / e não me soltas para eu engolir a saliva?… Ó guardião dos homens, / por que me converteste em teu alvo?» (7,19-20). Ao fim da luta com o divino, a sua oração desagua em colóquio descansado com o próprio Deus, em adoração silenciosa e incondicional: «Job respondeu ao Senhor…: eu desdigo-me e arrependo-me, deitado no pó e na cinza» (42,6).
Job, personagem construída e imaginada, que ganha vida bem real pela voz do autor do livro, não põe em causa a existência de Deus. O seu problema vai mais fundo. Procura a melhor relação com Ele, a relação que dê à vida humana o sentido transcendente que ela parece ter e que nem sempre é óbvio. E a sua oração não visa promover ou cultivar comportamentos éticos; muito menos visa tornar o orante irrepreensível. É antes uma viagem ao interior da pessoa, que a faz crescer em dimensão humana e espiritual. É sincera expressão de humanidade: «eu desejo falar ao Todo Poderoso, / quero discutir com Deus» (13,3). É vida incarnada que, em prece de aspiração ao divino, se quer salvar dos seus medos e das suas limitações: «Não são pouco os dias da minha existência? Deixa-me! / Afasta-te de mim, para eu retomar alento» (10,20-21). Ensinando a olhar para a vida, aproxima-a do invisível. È palavra de um homem que evolui para palavra de Deus: é carne e espírito, sangue e substantivo, entre o tempo e a eternidade, breve espaço humano que abre espaço infinito a Deus. A sua é oração da verdade sobre Deus e sobre o ser humano. De facto, emite uma carga humana e espiritual que electriza, prende e apaixona qualquer orante, por apático que seja. Cara a cara com Deus, afirma: «Sou inocente» (9,21); «ainda que Ele me mate, n’Ele esperarei» (13,15).
O cristão e os crentes conhecem porventura o sofrimento e a paciência de Job, o do prólogo (Job 1-2). Mas o Job em oração, orante adulto e empolgante, que procura uma nova imagem e um novo rosto de Deus e o encontra rezando, é o melhor Job: é o Job que exprime o homem total, a sua inteligência, a sua fé, as suas emoções, as suas revoltas interiores, falando com Deus ‘tu a Tu’ e abrindo-lhe com a maior franqueza os sentimentos e as pregas da alma até chegar à blasfémia; é o Job que nos arrebata e enfeitiça com a força magnética da sua insatisfação inicial e da sua contemplação final, o Job a cuja oração Deus responde (38,1-42,6). O mais exímio orante do Antigo Testamento transporta-nos aos confins do espírito humano, com esplendorosa beleza poética, em imagens alucinantes que encastoam gritos de dor nos lamentos de perplexidade e de angústia. Figura de todos os crentes, descrentes e orantes inquietos que buscam sentido para a existência, Job encontra-o numa experiência de Deus. Agiganta-se por cima de todos os que, como ele, ensaiam captar Deus sem o capturar, se deleitam a dialogar com Ele e penetram no seu mistério pela oração. Nos próximos ensaios acompanharemos aqui a evolução da oração de Job pensando na forma e nos eventuais conteúdos da nossa própria oração.