Frei Carlos Gonçalves, OCD

O nome que melhor designa o Deus revelado pelo Jesus Cristo é o Deus compaixão e da misericórdia: “contemplando, a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e batida, como ovelhas sem pastor” (Mat.9, 36). Esta apenas uma das inúmeras referências bíblicas que nos revelam esta marca amorosa do Nosso Deus, que se vem repetindo ao longo deste ano jubilar da Misericórdia.

Esta minha breve reflexão com a família do Carmelo, através do Boletim de Espiritualidade online, apenas visa partilhar alguns subsídios espontâneos, sem pretensão de pesquisa científica, acerca desta realidade estruturante do Deus de Jesus Cristo de que me sinto agraciado por saber que está apaixonado pelo ser humano e que se compadece de coração (misereri-cordis) pela causa humana.

Num contexto histórico e cultural das sociedades ocidentais, ditas desenvolvidas, onde o economicismo e as lógicas do consumo e do possuir se impõem como as grandes referências deste nosso “admirável mundo novo” (Aldous Huxley, 2003); onde a grandes narrativas religiosas e ideológicas parecem ter entrado em colapso; onde se acede, através do espaço cybernet, a múltiplas mensagens contraditórias e igualmente válidas enredando-nos num relativismo vazio; onde as dimensões da comunidade foram pulverizadas pelo império do individualismo narcísico; estas marcas culturais, entre outras, contribuem, de forma decisiva, para a emergência de um caldo cultural pantanoso que nos torna mais vulneráveis em termos pessoais e sociais, colocando em risco, a integração mais profunda da nossa identidade como membros de uma cultura construída a partir da mensagem cristã.

Esta cultura mediatizada por redes e com dimensões pantanosas e líquidas, onde até o amor é líquido (Bauman, 2006) não oferece os fundamentos/cimentos que consolide a integração pessoal, social e religiosa que foi garantida durante séculos pelas grandes narrativas culturais e religiosas. Como a dimensão do religioso, reduzida frequentemente à esfera do privado e a meros rituais ou devoções sem sentido, corre-se o perigo de ser apenas mais uma proposta, e não se afirmar como uma mundividência integradora e veiculadora de sentidos plenos desde as grandes referências que nos vêm do Evangelho de Jesus como Boa Notícia, correndo-se o risco de nos sentirmos privados da experiência desta com-
-paixão
de Deus pela humanidade de hoje. Ele continua apaixonado de coração, mas os humanos de hoje, inclusive os que se dizem cristão, são evitantes a esta mensagem amorosa e complacente, porque mergulhados e ludibriados em paixões efémeras, intensas, líquidas e descartáveis, produtoras de vulnerabilidade e sofrimentos. Nem amamos nem nos deixamos amar!

Os saberes das ciências sociais e humanas, mesmo sem assumirem explicitamente este Deus com-paixão e misericordioso, denunciam claramente o cenário alarmante e auto-destruidor das sociedades contemporâneas. Salman Rushdie (1991) para caracterizar o momento atual afirmava que o self atual é “um edifício fragmentado, ambíguo e inseguro construído a partir de retalhos, dogmas, injúrias infantis, artigos sensacionalistas de opinião, comentários casuais, pequenas e efémeras vitórias, gente que odiamos e amamos” (p. 12). Para o autor, a narrativa pessoal e social constrói-se a partir de uma fragmentação acumulada de experiências efémeras feitas de sucessivos “agoras” e “recomeços” contínuos.

Na mesma perspetiva, Antonny Giddens (1997) sublinhava: “O self nas sociedades contemporâneas é débil, quebradiço, fraturado, fragmentado… tal como o mundo social se torna disperso, também o self deixa efetivamente de existir com um sentido de coerência; o sujeito singular é um sujeito descentrado que encontra a sua identidade nos fragmentos da linguagem e dos discursos efémeros” (p. 156). Neste sentido, o novo espaço de construção de sentidos para a experiência humana situar-se-á algures entre a liberdade e o risco, a imprevisibilidade e o caos, a segurança e o burlesco, o progresso económico sem limites e o seu próprio colapso, o relativismo em que estamos mergulhados e a dificuldade em encontrarmos referências éticas criteriosas para nos posicionarmos de forma crítica face à realidade.

O homem comum, produto desta cultura “reciclável”, flexível, polivalente e consumista, é o homem irónico de R. Rorty: “que nunca é capaz de assumir-se a sério, porque é sempre consciente de que os contornos em que se experiencia estão sujeitos à mudança, é sempre consciente da contingência e da fragilidade do seu vocabulário final, e, portanto, de si mesmo” (in Sennet, 1998, p. 122). Ou ainda, com afirma Bauman (2006), nas sociedades líquidas, onde as ausências de bases seguras se fazem sentir, até o próprio amor: é um amor líquido, como consequência, a família, a sociedade… são líquidas!

Estas análises macro psicossociais que caraterizam as sociedades contemporâneas ocidentais têm um impacto determinante na forma como os sujeitos constroem as suas vidas privadas e familiares com as mesmas marcas do efémero, do fragmentado, do fraturado, do individualismo insolidário e feroz com défices de dimensão pública e comunitária: o que se ganha em individualidade e privacidade perde-se em sentido de pertença e identidade a uma comunidade de cultura e valores, de ser Igreja ao serviço do anúncio deste Deus que quer devolver à condição humana a sua identidade de ser construtora de uma cultura do Amor deixando-se apaixonar pelo Deus apaixonado de Coração.

Concluindo esta minha partilha despretensiosa: ninguém constrói relações apaixonadas e amorosas consistentes com os outros se não se deixar apaixonar pelo Deus Amor. Isto é, ninguém estará aberto à misericórdia de Deus e dos irmãos se não se aceitar, de forma responsabilizante, nos seus limites e se deixar curar pela tolerância ilimitada da misericórdia, da com-paixão de Deus e dos irmãos. A pessoa egocentrada, insegura, orgulhosa e desconfiada não apenas resiste ao perdão do Outro e dos seus irmãos como se autoflagela nas suas obsessões compulsivas de perfecionismo egocêntrico não reconhecendo as suas fragilidades e limites, mas confinando-se incontornavelmente a um mundo de puro narcisismo e sem perspetivas de abertura ao Futuro do Deus COMPAIXÃO E MISERICORDIOSO.