Armindo Vaz, OCD
Para férias, propomos um itinerário cultural, também como experiência espiritual, pelo património que a Ordem de Cister ajudou a moldar ao longo de séculos na região sul do Douro vinhateiro. Está comodamente apoiado por infra-estruturas de lazer em vista do turismo. Mas aqui, louvando a recente recuperação patrimonial, queremos valorizar a riqueza que reconduz à espiritualidade.
Trata-se do trajecto hoje chamado Caminho dos monges. Conta a imponente história que começa com a fundação do mosteiro de S. João de Tarouca em 1140, com uma pequena comunidade de monges, implantada numa encosta serrana, no vale do rio Varosa, no cruzamento de duas linhas de água, em conformidade com a exigência de Cister, de edificar junto a cursos de água. Intimamente ligado à história do vinho do Porto, é o primeiro mosteiro da Ordem de Cister em Portugal, numa região de densa implantação monástica, representada em várias igrejas de estilo românico: na de S. Pedro de Tarouca (o primeiro documento que a refere é de 1163 e é de transição para o gótico), na de Tarouquela, no mosteiro de S. Maria de Cárquere, na de S. Maria de Almacave, na matriz de Armamar… A própria igreja do mosteiro tem elementos do românico, que respira e inspira espiritualidade, concentrada na profusão dos dourados dos altares e no cadeiral do coro que, muitas horas ao dia, emitia a recitação dirigida ao céu. A construção começou propriamente em 1152, coincidente com as origens da portugalidade e com a fundação da nacionalidade, tendo sido lançada nesse ano a primeira pedra da igreja conventual (o reconhecimento da independência de Portugal aconteceu em 1143 no Tratado de Zamora). O mosteiro – filiado à abadia francesa de Claraval quando Bernardo, seu fundador, era abade entre 1120 e 1153 (S. Bernardo, representado num retábulo da igreja, bem conservada) – tinha-se imposto ao então ainda conde Afonso Henriques. Concedeu-lhe carta de couto em recompensa pelo prestimoso apoio dos monges junto do Papa (Eugénio III, antigo monge cisterciense!) para o reconhecimento da independência do Condado Portucalense. Para os monges, a recompensa era espiritual. Trabalhando, escutavam de Isaías (40,3; 43,19): «Preparai no deserto o caminho do Senhor… Vou abrir um caminho no deserto e fazer correr rios na estepe». O de S. João de Tarouca foi um dos mais importantes mosteiros portugueses, a par do de S. Maria de Alcobaça (cuja carta de couto é de D. Afonso I de Portugal directamente a Bernardo de Claraval em 1153 e cuja construção se iniciou em 1178).
A história de Cister no Douro continuou avançando para Norte, escrita em pedra e nas esculturas douradas, da lavra de prestigiados entalhadores. Os monges progrediram ao longo de mais de 40 km por entre desfiladeiros tortuosos e as cascatas precipitadas do rio Varosa. Ao de S. João de Tarouca associou-se o (irmão) mosteiro cisterciense de S. Maria de Salzedas. D. Afonso Henriques tinha doado em 1152 o couto inicial de Algeriz/Argeriz a Dona Teresa Afonso, segunda esposa de Egas Moniz, onde, na vertente direita do rio Varosa, se situam as ruínas da chamada Abadia Velha, à qual estaria associada uma comunidade de monges (e onde hoje está o luxuoso Douro Cister Hotel). Sucessivamente designou-se couto de Salzedas; e Dona Teresa doou essa ‘abadia’ (a comunidade que viveria por ali em habitações provisórias) aos monges cistercienses de Claraval, que em 1156 a aceitaram como membro de pleno direito da Ordem de Cister. As obras de construção do mosteiro definitivo iniciaram em 1168, a 2 km dali, em Salzedas, vindo a nova, actual, igreja a ser sagrada em 1225. Dona Teresa tornou-se assim a principal responsável pela fundação do mosteiro de S. Maria de Salzedas. Também foi a seu tempo um dos maiores mosteiros cistercienses de Portugal. Grão Vasco viria a ser um dos nomes maiores da pintura que deixou a sua marca nesse mosteiro, aliando a beleza à espiritualidade. O couto monástico beneficiava da cobrança de portagem – a primeira medieval em Portugal – na ponte e torre de Ucanha, desde o século XII cabeça de couto, uma das suas aldeias, das mais antigas da região, cujas origens remontam à época dos romanos.
Os dois mosteiros irão, ao longo dos séculos, transfigurar o vale do Douro num espaço de cultura e de saber, modificando a paisagem e pondo a espiritualidade ao serviço das pessoas. À medida que o rio Varosa avança na sua confluência para o Douro, descobre a arborescência de outros espaços artísticos religiosos. De facto, do ‘caminho dos monges’ abeirou-se mais tarde um monumento notável, o convento franciscano de S. António de Ferreirim, de traça manuelina. Fundado em 1525 com a doação de terrenos aos frades, ressuma espiritualidade do seu tecto de caixotões de madeira pintada com cenas bíblicas, do retábulo de talha dourada e das tábuas quinhentistas que conserva no interior da igreja e no centro interpretativo, atribuídas aos «Mestres de Ferreirim», os melhores pintores activos em Portugal à época.
Outra presença artística no ‘caminho dos monges’ para o rio Douro, nas margens do rio Balsemão, afluente do rio Varosa, é a Capela de S. Pedro de Balsemão, relevante monumento nacional no vale do Varosa. É discutida a data das suas origens. Mas, enquadrada hoje num solar seiscentista, conserva vestígios de arquitectura moçárabe ibérica, testemunhos do séc. X, e do românico, séc. XII. [continuará]