Armindo Vaz, OCD
Como vimos no mês passado, a peregrinação aos lugares sagrados é, no jubileu, um exercício humano e religioso significativo. Todavia – parafraseando S. Jerónimo e o enciclopedista Voltaire – não são os lugares santos que nos salvam: salva-nos o amor do Deus santo. Esta verdade leva-nos ao conteúdo intrínseco da indulgência jubilar, que é o amor recebido, de Deus. O Papa Francisco é lapidário: «A primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo, deste amor que vai até ao perdão» (Misericordiae vultus, 12). Toca assim o coração do evangelho, onde amor é palavra densa. Desde logo, diz o Ser de Deus (1Jo 4,8.16), equação que marca a originalidade da fé cristã no concerto das religiões. E o ‘amor que Deus é’ não é abstracto, romântico, nebuloso ou distante, também porque l’amour platonique est toujour plat, jamais tonique. Deus pôde ser definido como Amor porque se tornou próximo dos que amava. Pudemos vê-lo, manifestado historicamente no Filho Jesus, particularmente ao deixar crucificar a sua vida inocente. A sua morte por amor revelava à fé que Deus participa na história da humanidade: «Estou persuadido de que nem a morte nem a vida…, nem o presente nem o futuro… poderá jamais separar-nos do amor de Deus que é em Cristo Jesus» (Rm 8,38-39). «É o próprio Pai que vos ama, porque vós já me tendes amor» (Jo 16,27). Em cada pessoa que o celebra, o jubileu alcança o objectivo de a abrir ao ilimitado amor de Deus manifestado em Jesus. A fé introdu-la de tal modo na órbita do amor de Deus que tudo na sua existência pessoal e de crente se joga no interior desse amor, onde tudo é sublime.
Aí, porém, soa um alerta: tanto amor dado só é reconhecido por um amor correspondente. É preciso tê-lo. «Porque é sempre assim: ao amor só o amor o encontra, só o amor o entende, só o amor o merece» – assegura o agostiniano Frei Luis de León (citado em El cantar más bello [traducción y comentario de Emilia Fernández; Trotta; Madrid 1998] 85). Se «Deus é amor», só o amor O reconhece e crê n’Ele: «Quem não ama não reconheceu Deus» (1Jo 4,8). Não é por acaso que o evangelho de João, na cena do Calvário, põe junto à cruz o discípulo que Jesus amava (Jo 19,26). Os outros discípulos também tinham acreditado em Jesus. Mas, não entendendo suficientemente o significado da sua morte por amor a eles, fugiram. O discípulo que se sentiu amado não fugiu, porque reconheceu o amor de Deus em Jesus. Igualmente no regresso ao trabalho da pesca «os discípulos não reconheceram que era Jesus» (Jo 21,2-3). Só «o discípulo que Jesus amava» foi capaz de o reconhecer: «É o Senhor» (Jo 21,7). Do amor que reconhece em Jesus o Enviado de Deus (Jo 13,20) emerge a verdade de uma vida. O amor, enquanto recebido e enquanto dado, é a expressão mais coerente da revelação cristã. Cada um pressupõe o outro, também ao celebrar o jubileu. Quem tem consciência de que é envolvido no amor de Deus em Jesus recebe a indulgência: isso é a indulgência. Então é convidado a corresponder em consequência, segundo a lógica do amor. Ao amor reconhecido, em vertical, responde o amor em horizontal: «Porque o amor vem de Deus, amemo-nos uns aos outros… Se Deus nos amou assim, também nós nos devemos amar uns aos outros… Quem ama Deus ame também o seu irmão» (1Jo 4,7.11.20-21; 3,16).
Este amor fraterno a investir no quotidiano seria, à partida, uma aposta sem garantia, condicionada pela fragilidade humana. Mas Paulo declara que em todas as tribulações e dificuldades «somos mais do que vencedores graças àquele que nos amou» (Rm 8,37), «pelo amor imenso com que nos amou» (Ef 2,4; Gl 2,20). Esta garantia estremecedora deriva do facto de o crente ser, primeiro, amado por Deus (1Jo 4,9-10.19). O gozo de ser amado, sem outra razão que não seja a de ser quem é, institui-se como o mais forte estímulo para ganhar a aposta de amar, alargando o amor de Deus às pessoas: «Não há coisa tão eficaz nem tão poderosa em quem ama como saber que é amado: isso sempre foi a isca e o íman do amor» – insiste Frei Luis de León (Cantar de Cantares [Edición de J. Guillén; Sígueme; Salamanca 1980] 90). J. W. von Goethe veio a dizer: «Sentir-se amado dá mais força do que sentir-se forte». Bem o percebeu Camilo Castelo Branco no Amor de perdição: «No amor que [as pessoas] nos dão é que nós graduamos o que valemos em consciência» (Sistema solar; Lisboa 2018, p. 111). Ao ver a beleza e ao sentir o amor da jovem que passou a amar, o protagonista do romance projectou na sua vida a luz e o sentido que não via antes e teve força para substituir o ódio e o crime pelo amor. Para conduzir o ser humano à felicidade, o amor é o maior poder.
No fim do jubileu de 2015 o Papa Francisco concluía: «Sou amado, logo existo, estou perdoado; por conseguinte, renasço para uma vida nova» (Carta apostólica Misericordia et misera, 16). O grande fruto do jubileu decide-se no acolhimento do amor de Deus em forma de perdão de Jesus pela mediação da Igreja. Na celebração do jubileu não esquecemos o convite do apóstolo Pedro (1Ped 4,8): «Acima de tudo, mantende entre vós um intenso amor, porque o amor cobre a multidão dos pecados». Esta é uma verdade antropológica de grande densidade, a forma mais expressiva de conversão, suposta e requerida para a celebração do jubileu. No ‘jubilado’ renovado, é o amor que deve primar como verdadeiro ser e identidade da pessoa: ele é na medida em que ama; a medida do seu ser é a medida do seu amor. Santo Agostinho di-lo com acutilância: «O meu peso é o meu amor», isto é, peso tanto quanto amo, o meu primeiro valor está no meu amor (Confissões, XIII, 9, 10). A percepção de Paulo é semelhante: «se não tiver amor, nada sou» (1Cor 13,2); na expressão de João, «quem não ama permanece na morte» (1Jo 3,14), eventualmente anterior ao jubileu. Quem ama está cheio de vida. Tendo, no jubileu, conhecido e reconhecido o amor, só falta traduzi-lo em vida: «A fé manifesta a sua energia mediante o amor» (Gl 5,6); o amor é que torna a fé verdadeira. O conteúdo da fé é «o Amor total, no seu poder eficaz, na sua capacidade de transformar o mundo» (Francisco, Encíclica Lumen fidei, 15).
A própria indulgência na celebração do jubileu – amor descendente – é uma vitamina para não desistir do amor ascendente. Interioriza a ideia de que a fé cristã terá de ser um motor de acção e de mudança, de cultura do amor aos que andam nas periferias da vida, por exemplo, na pobreza que é não conhecer o evangelho de Jesus. O jubileu quer acelerar este motor e contribuir para a globalização da misericórdia e da compaixão. É «um ano da graça do Senhor» oferecido ao crente, «o tempo favorável» (2Cor 6,1-2), «o tempo de deixar tocar o coração» (Francisco, Misericordiae vultus, 19).









