Armindo Vaz, OCD

Apesar de a Bíblia ser muito lida, o livro de Job ainda é pouco conhecido. Contudo, os leitores já fizeram experiências que moldaram o Job bíblico. Trazem-no dentro de si desde que perderam a inocência, isto é, desde que fizeram a experiência intensa da dor, porque, antes de sermos joguetes das paixões ou das estratégias de outros, somos seres de dor. O livro nasceu precisamente da experiência da dor extrema e quer iluminar a relação do ser humano com Deus, mesmo nessa situação-limite. Na formulação da tese, o sofredor, íntegro, é feito objecto de uma aposta com Deus sobre a sua fidelidade a Ele: «Será que Job ama Deus sem nenhum interesse?». A aposta, que só abrangia as propriedades e a casa, foi ganha por Deus: Job perdeu todos os bens mas manteve-se fiel a Deus. O apostador, porém, joga outra carta, mais arriscada para o ser humano, desafiando Deus: «Atinge-o nos ossos e na carne e verás se ele não deixa de bendizer-te na Tua presença» (1,9-11; 2,3-6). O apostador é o opositor ou acusador, satan em hebraico: aqui apresentado como adversário do homem, é uma figura que o pensamento bíblico explorará como personificação literária simbólica da oposição a Deus e do mal causado ao ser humano (o grego do Novo Testamento irá transliterá-lo como satanás ou traduzi-lo como diábolosdiabo). A segunda aposta, que implicará uma visão ‘económica’, contratual e mercantil da religião (dou fidelidade para que dês a salvação), é aceite por Deus e conduzida aos limites do tolerável: «O opositor… feriu Job com úlceras malignas» (2,7). «O ouro prova-se no fogo» (Sir 2,5). Tendo este homem muito rico (1,3) sido provado no ter, mais dura ia ser a prova no ser, ferido «desde a planta dos pés até ao alto da cabeça» (2,7-8). Job é o sofredor total.

A esta altura, o leitor já se revê na figura representativa que é Job, que sentiu cravada na carne a dor lancinante, sem saber o que dizer dela. Realmente, quando nos vemos ao espelho da sua história, não apetece filosofar, nem procurar soluções fáceis para a dor. Só o silêncio oferece algum conforto: «Três amigos de Job, ao ouvirem toda esta desgraça que tinha caído sobre ele…, choraram…, sentaram-se com ele por terra, sete dias e sete noites, e nenhum ousava dirigir-lhe a palavra, pois viram a atrocidade da sua dor» (1,22; 2,10-13). Se a palavra tem poder curativo, não menos o tem o silêncio, o silêncio cheio, o silêncio que suporta a ausência de estímulos e gera empatia e sym-patia, sofrer com. Aqui é o silêncio atónito diante da dor que assalta as entranhas, um silêncio que invadiu os séculos e o mundo até chegar a nós. Os «sete dias e sete noites sem dirigir-lhe a palavra», que simbolizam o período tradicional do luto, podem significar que o silêncio é uma mais-valia imperdível, também na incapacidade de explicar tanta dor. Quem assim guarda silêncio não teme virar-se para dentro de si e encontrar-se consigo próprio (procurando sentido para a dor). Job é “humano, demasiado humano” para passar sem sofrer. E, quando o corpo sofre para além do suportável, faz-se viva a alma, numa unidade indissociável com ele.

Aí, no fundo do poço das desgraças que pulverizaram a sua casa e a sua vida, o Job amadurecido pela dor na carne exprime-se em oração. Vira-se para Deus. Quando a dor do corpo atinge a alma, desperta a consciência da ligação do humano ao divino: «O Senhor o deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o nome do Senhor» (1,21). Vêm à memória as palavras da ópera Parsifal de Richard Wagner: «A ferida, só a pode fechar a lança que a abriu». Tamanha desgraça – pensava a sabedoria tradicional de Israel, como ainda pensa muita gente hoje – só pode provir de Deus; e só Deus a pode remediar. Job aprenderá, na escuta da palavra de Deus (38,1-42,6), que só Ele dá sentido último à dor humana, mas que ela não é causada por Ele. De qualquer forma, perante a noite escura do ‘excesso da dor’, Job, em nome da humanidade, precisava de a gritar a Deus; porque ela é surda, para não aparecer absurda só Deus a poderia escutar e transfigurar, até porque, se a calasse, ela agravar-se-ia. É num percurso de descoberta espiritual que Job afoga – ou afaga? – a sua ferida. E uma das trajectórias do livro é a da oração. Conta a sua própria história de sofrimento fazendo oração. Entrançando a oração com a dor, quer compreender-se a si próprio e faz-nos reconhecer a humanidade comum a que pertencemos e o drama que nos habita, no entrançado dos fios que nos ligam uns aos outros e na solidão que nos angustia ou nos salva em Deus. Com a sua oração, Job transporta consigo a humanidade e eleva-a para Deus.

Com Job aprende-se que a oração é atitude total, instância última da vida em qualquer circunstância. A sua finalidade não é tanto satisfazer pedidos a Deus ou evitar sofrimentos ou alcançar conquistas. Ela é a porta para um reino que se entreabre diante de nós pondo-nos diante do Mistério. O livro põe Job diante do sofrimento, porque este é o que nos põe em contacto radical com nós mesmos: leva-nos de uma vida à flor da pele, vivida automaticamente, para a consciência do que é viver. Ora, isso mesmo faz a oração: corta no vivo da nossa existência e inculca em nós a ideia de que, para aceitar a dor extrema, é preciso estar descalços, como diante do Mistério, pois ela descalça todas as nossas seguranças e desperta todas as defesas possíveis. «Então Job caiu por terra em adoração e disse: Nu saí do ventre da minha mãe e nu para lá voltarei; o Senhor o deu, o Senhor o tirou; bendito seja o nome do Senhor» (1,20-21).