Armindo Vaz, OCD

Na história bíblica de Caim e Abel (Génesis 4), o narcisista Caim conheceria melhor o seu eu se o visse ao espelho do irmão Abel, que com ele partilhava origem, sangue e vida. De facto, não era irmão por lei. Era irmão por sangue, por dom e generosidade dos pais. Rompendo os laços de sangue, profanou a fraternidade, perdeu os direitos e os bens que o sangue dá aos irmãos. Por isso, o relato figurativo faz do assassino do irmão um falhado, um fugitivo sem lar, desnaturado sem meta e sem repouso, sem objectivo pelo qual viver, degradado sem rumo e sem Deus, ameaçado pelo desamparo: “obrigado a ocultar-me longe da Tua face, terei de andar fugitivo e nómada pela terra”. A violência torna-o desterrado, expatriado, deserdado do solo fértil. A expulsão para longe do solo arável simboliza eficazmente a alienação do fratricida, que matou a harmonia de si próprio com o seu mundo ambiente. A violência mortífera fez dele um vivo morto, ao fazer-lhe perder a família e o lar, primeira estrutura de acolhimento e referência espacial fundamental do ser humano.

O relato insinua ainda: na rede social entre irmãos de sangue, a agressão brutal volta sempre ao seu autor, em forma de boomerang: depois de fazer mal aos familiares e causar catástrofes no círculo dos vizinhos, mata muita coisa no próprio agressor. E não é Deus que aplica o castigo. Se a história de Caim e Abel põe Deus a punir o fratricida, significa com essa acção simbólica que o castigo é inapelavelmente aplicado pela própria vida: nem Deus o consegue evitar; também significa que o mal feito é gravíssimo. Faz entender que Deus não larga o violador da harmonia da criação em curso (na narração): a consciência própria condu-lo ao horror do seu acto execrável, ao subsolo que engoliu o sangue/vida da sua vítima. Sugere que é imperioso estimar a vida antes de qualquer outra coisa, pois só tendo vida se pode dar sentido à vida.

Porque a palavra irmão em hebraico estende o seu alcance a vários graus de parentesco, consanguinidade e afinidade, cobrindo com a sua significação os membros da grande família, da tribo, da comunidade, do povo e os amigos, este processo de expansão semântica alarga o sentido de fraternidade a todos os humanos. Se é verdade que a história de Caim e Abel os apresenta figurativamente como irmãos de sangue, a força transfiguradora deste relato das origens transfere a fraternidade do plano biológico para o plano universal e para o campo da vontade, do amor afectivo e efectivo, no mais amplo sentido de irmão em hebraico. Foi o que Jesus fez declarando aos discípulos: “vós sois todos irmãos” (Mt 23,8). Este alcance universal da fraternidade, que institui a cultura da vida e rejeita a cultura da morte, fica mais aberto pelo profeta Malaquias: “Não temos todos um único pai? Não nos criou um só Deus? Porquê então uma pessoa atraiçoa o seu irmão profanando a aliança dos nossos pais?” (2,10). Ter uma única origem, divina, é o fundamento mais exigente de fraternidade, biológica e universal.

Ao nível da releitura existencial, a pergunta divina ao fratricida (“onde está o teu irmão?”) pede aos humanos contas da irmandade que formam. A resposta a essa pergunta poder-se-ia articular com outra que, em contexto diferente, a Bíblia põe na boca dos “adversários que me insultam e me vão repetindo todo o dia: «onde está o teu Deus?»” (Sl 42,4.11). O Novo Testamento responderia que Deus está em ti, meu irmão: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos a mim o fizestes” (Mt 25,40); “se alguém disser «eu amo Deus» mas tiver ódio ao seu irmão, é mentiroso, pois aquele que não ama o seu irmão a quem vê não pode amar Deus a quem não vê. E nós recebemos dele [Jesus] este mandamento: Quem ama Deus ame também o seu irmão” (1Jo 4,19-21). Mas já em Gn 4 o irmão irrompe na vida do outro e interpela-o pedindo respeito, exigindo resposta, isto é, responsabilidade de ‘estar lá’ para ele, porque lhe diz respeito, responsabilidade que também é diante de Deus, criador da fraternidade: procura o teu irmão e encontrarás a verdade de ti mesmo. Nenhum humano pode demitir-se de ser irmão: “Ou somos irmãos ou tudo se desmorona” (Papa FRANCISCO, Mensagem para o Dia Internacional da Fraternidade Humana, 4.2.2022).

O evangelho de João (8,44) reinterpreta o fratricídio de Caim, sugerindo que a morte violenta não é tolerada por Deus: “O diabo… foi homicida desde a origem e não estava pela verdade, porque nele não há verdade. Quando diz o que é mentira, fala a partir do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira”. De facto, o mal de Caim fora enganar-se a si próprio. Ao ouvir a sua própria mentira, deixou de ver a verdade e a força da fraternidade instituída pela criação, perdendo o respeito por si e pelo irmão. «Falhou o alvo», permitindo à inveja produzir a violência. De facto, a inveja não valoriza o outro nem acarreta prazer ao próprio; é, por essência, contra a fraternidade e contra a igualdade.

Segundo Gn 4, o ser humano não foi criado para a violência mas para a fraternidade. A violência não faz parte da natureza humana. É filha do ódio. Não tem memória. Esquece que todos os humanos são irmãos. A carta aos Hebreus (11,4), arquivo de memórias do Antigo Testamento, relê assim a figura de Abel: “estando morto, ainda fala”. Enquanto o fratricida se tornou um vivo morto, Abel é um morto vivo. A personagem simbólica e o seu sangue derramado continuam a gritar nesta página bíblica, emprestando a sua voz original às vítimas inocentes da história humana e denunciando a violência fratricida como negadora da própria humanidade. Abel mantém altos os valores e a essência da humanidade, aviltada pelos fratricidas. Faz acreditar que o futuro da humanidade não será de violência mas de solidariedade e de fraternidade ilimitada, em que o ser humano não será lobo para o homem, mas irmão para o homem. A resposta à pergunta da irresponsabilidade “sou porventura guarda do meu irmão?” estará no hino à alegria fraterna: “Oh, que bom e amável é conviverem os irmãos em harmonia!” (Sl 133,1).