Frei João Costa, OCD
Ando há bastos dias acabrunhado e sem vontade de viver. Pergunto-me repetidamente que faço eu ainda aqui, o que se espera de mim e se estas serão as derradeiras horas de meus derradeiros dias e, concluo que talvez não, embora disto não haja nem ciência certa, nem certezas redondas. O que sei é o que aprendi dos antigos espécimes da minha raça, cuja pequena taça de sabedoria garante que as horas antecedentes ao passamento são de jubiloso sobressalto, em que mais definhando, o passante se soergue, tagarela, faz planos, rasga avenidas e caminhos marítimos para o futuro, lançando novos projectos e novas naves aos mares. De tão taciturno que estou, longe me encontro, porém, de governo de naves, lançamento de caboucos ou de dar conselhos a mais novos.
Uma ansiosa névoa cinzenta paira há dias sobre a grande cidade, pelo que todos, menos eu, se surpreenderam quando esta sexta-feira, pelas três da tarde, repentinamente, o céu se escureceu sobre o nosso lugar.
O comum dos povos e das gentes garante que só olhamos para o chão, de olhos rentes, tristes e afeitos ao pó, ou porque carregamos os nossos pecados e os pecados de muitas gerações anteriores, ou porque nos esmaguem brutais masmorras que estranha penitência imerecida nos imponha. Nas colunas dos exércitos marchamos sempre atrás, que somos nós quem carrejamos com as provisões, seja para os belicosos estômagos dos humanos, generais ou não, seja para os estômagos das demais alimárias, sejam as tendas de acampamento, seja o pesado equipamento de artilharia. Em tempos de paz, raros por estes dias, atrelam-nos o arado e lá vamos nós rasgando leivas, virando a terra, ou nos prendem a negra nora e ficamos ali rodando, rodando, rodando, até regar inteiros vinhedos e veigas. Outros há com sortes bem piores que a minha: meu compadre Lira alombou com toneladas de minério — o patrão dele criou doze filhos e uma catrefada de netos só às custas das suas costas! — e o velho Xavier morreu esmagado de desvalimento por força dos troncos que, havia séculos, carregava daqui para ali, como Sísifo impenitente.
Desculpar-me-eis, ó vós que levais perdendo alguns minutos da vossa preciosa vida só de ouvir rabugices de asno velho; o certo é que não me apresentei, o que é algo assaz imperdoável, indo já, como se vê, este texto quase no seu equador! Chamo-me Benício, pacífico nome de guerra, que jamais de vida folgada me sustentei. Levo-o em honra de antepassado que não conheci e que serviu o Rei David. Manquejo de perna traseira e cego sou de olho contrário, o que me tornou inútil para trabalhos servis, mas não me dispensou de canseiras, dores de cabeças e jornadas forçadas.
Bastas estórias tenho para contar.
Incapaz para trabalhos pesados, era a mim que os engenheiros soltavam se urgia abrir estrada nova: orientavam-me na direcção do rasgo a abrir, espetavam-me uma palmada no quadril e lá ia eu: terra que cruzasse ou colina que subisse, por ali se rasgaria o passadiço. Por fim, os achaques da idade desimpediram-me do ofício, sobremaneira, quando, certa vez, a sul das Montanhas do Líbano, as forças deixaram de me assistir. Como quem se livra de traste fanado deram-me como de gorjeta a um carpinteiro, que digo eu, a um pobre mãozinhas, que de tudo um pouco ele sabia fazer.
Tinha eu, à data, plena consciência de apenas servir para pouco mais do que para fazer companhia e mastigar rala palha seca. E assim era. Algumas vezes, daqui para ali lhe carreguei as ferramentas, outras vezes uns tabuões e até uns barrotes. Mas não muito mais.
Um dia ele casou; lembro-me bem dos esponsais e dos doridos desabafos que três ou quatro meses depois lhe percebi. Até que me segredou que de preparar-me havia, pois haveríamos de empreender longa jornada, de Nazaré até às terras de nossos antepassados. Não foi este o meu trabalho mais duro, mas o de maior cuidado: carreguei Maria, a jovem esposa, no meu lombo, que procurei fosse manso como um afago. Ela ia grávida, ainda por cima… Jamais esquecerei, por fim, a Noite dos Anjos, quando depois do nascimento do filho, Jesus, vieram eles, inesperadamente, cantar a paz sobre a terra. Ah, mas do que mais gostei foi de ter ficado quietinho, quentinho, anichado e sossegado, diante da manjedoira do recém-nascido. Confesso que, mais que uma vez, me apeteceu cobrir o bebé de beijos, pois era tão lindo e tão fofo! E ainda por cima, jazia deitado no saboroso feno da manjedoira…
Fiquei, ficamos, por ali uma larga temporada. Depois fugimos a trote trôpego, mais trôpego que trote, para o Egipto, à frente de um tropel de cavalos que jamais lograram alcançar-nos; mérito que de todo não foi meu! No Egipto, andámos, antes de tempo, de anás para caifás, quais saltimbancos, de casa às costas, melhor, de tenda às costas, sendo que esta era a parte que só a mim cabia, claro. Nunca, porém, o lamentei, que eu faria o que fosse necessário por algum deles os três — até dar a vida…
Passados anos regressámos juntos a Nazaré, terras por mim bem conhecidas e tão amadas. Continuei de olho no crescimento do Miúdo, que, está bem de ver, não era um miúdo qualquer. Era um doce, um regalo de rapaz, um anjo de mãos mansas e palavras doces que reconfortavam e amoleciam o coração mais negro ou empedernido. Eu derretia-me só de ouvir o seu nome! Amei-o, ainda mais quando, morto o doce José, ele assumiu a oficina do nobre pai. Não sei dizer qual deles era o melhor artífice, que um o foi por muitos anos e outro por poucos, mas este tinha cá umas mãos e umas intuições tão divinas que eram um espanto!
José, por seu lado, fora tão pobre e humilde aos olhos do mundo que se tornara grandíssimo aos olhos de Deus e dos anjos; e eu amava-o ternamente por isso. Ah, como eu gostava de ver o pai a ensinar o filho no preparo da madeira! Coisa mai’linda!
Jesus era divino, ninguém me tira isso da cabeça, que eu não sou burro nenhum e, não havia ninguém por cá maior do que Ele, claro está, e ao mesmo tempo era tão humano… Tão humano…
Bem, amei os dois, claro, que eu admirei sempre e sempre honrei a simplicidade de carácter e o amor ao trabalho.
Um dia Jesus partiu para anunciar a Boa Nova, já eu estava bem velho, cheio de cataratas nos olhos e de artroses e cáries nos ossos. Não servindo para mais, fiquei por ali a enxotar moscas e a descansar à sombra!
Uns dias antes do sol se ocultar naquela bendita tarde de sexta-feira, Maicon, meu neto mais velho, achegou-se, esbaforido:
— Família, família, trago uma novidade feliz!
— Fala, filho, fala, mas sê prudente.
— Ó família, ó pai, ó vô, que feliz que eu estou! Fui à grande cidade e havia gente de ambos os lados do caminho, de ramos nas mãos, saudando-me, dando vivas e batendo palmas! Estou tão feliz por mim mesmo!
A família encantou-se, menos a mãe que, ignorada, retouçava, um pouco, ao longe.
Cá por mim, sempre desconfiado da humana generosidade para connosco, os burros, e não lobrigando outra saída, retorqui:
— Filho, desconfia sempre dos humanos aplausos. O seu coração é demasiado volúvel; diz-me: que fizeste para os merecer? Tens mesmo a certeza que eram para ti?
— Bem, devolveu Maicon, na verdade, eu retouçava com minha mãe, quando dois homens me levaram pela arreata, e fizeram subir um tal Jesus. Foi a primeira vez que servi de montada. Inicialmente foi um doloroso desconforto, mas o Homem, afinal, era leve como um anjo!
— Verás, meu filho, volta, discreto, à grande cidade, que uma coisa aprendi servindo o bom velho José de Nazaré, descendente de David: as palmas e os elogios são, além de volúveis, voláteis! E sim, estas não eram para ti, mas para o doce filho do carpinteiro, que por certo eu também servi, há muitos anos, em Belém, Egipto e Nazaré. Vai certificar-te, meu filho, vai, mas vai prudente que, ou muito me engano ou Jesus acaba de perecer à mão dos poderosos do Templo. Certifica-te, por favor, e traz descanso a este velho coração de asno que, ou muito me engano, ou muito tenho de chorar e lamentar; e volta, volta, discreto, para nós, que o que tu quiseres que o outro cale, cala-o tu primeiro.