Frei João Costa, OCD
Em Gaza não morreram números. Morreram, sim, mulheres, mães, filhas, meninos. Velhos. Homens e pais. Irmãos, futuros militantes do Hamas. E morreram bebés que já nasceram depois de os ventres das mães terem florescido durante esta guerra. Morreram bebés de leite e de colo filhos todos das armas, da revolta, do medo, do horror; não da paz, do progresso, da oração, do sonho. São filhos e netos da raiva e do ódio ao inimigo. Bebés que não ouviram nem conheceram outras falas além dos gritos de horror, do zunido das balas e do estrondo das bombas, do ronco dos motores dos carros de combate inimigos, das imprecações, choros, lágrimas e juras de morte à Estrela de David.
Nas outras Gazas actuais a situação é idêntica, embora, aqui, neste texto, mais me circunscreva à que, por estes dias, mais ouvimos falar.
Eu que nestes meses todos não vi muita televisão, o que vi enjoa-me e agonia-me. E não, já não consigo ver mais de Gaza, mesmo se eu, como todos, sou poupado às imagens mais horripilantes e cruéis.
Falam que o Hamas — e não me incomoda tomar este nome por inimigo da Humanidade — encena as imagens de fome e horror que envia para as televisões ocidentais difundirem. Para nos confundirem e inquinarem. Talvez seja. Mas o que eu não consigo compreender é como Israel, robusto, bem alimentado e armado como se marchasse contra aliens — e para mim, Israel é um nome sagrado que virou infame — fez da Faixa de Gaza uma prisão a céu aberto, limitada por muros altos por três lados e, pelo quarto, pelo mar bravo. Eu não percebo como é que um povo, infamemente, a seu bel prazer, corta a água, o ar, o pão, a paz e as raízes do sonho a outro povo; para mais e por demais pobre e humilhado. Sim, sim, também lhe corta o ar, pois são tantas as bombas que ali despeja e ali rebentam que aquele ar é tudo menos bom e sadio, é veneno!
Eu olho para Gaza e credito-me que até as baratas da minha cozinha têm mais sorte que aquele povo. Olho para Gaza e já não tenho lágrimas para chorar. Olho e descreio-me: estarei passando por um pesadelo que inventei para me torturar a mim próprio e me autoflagelar horrivelmente? Que alguém me diga tolo, me sacuda e acorde, que eu já não aguento mais.
Hesitei em escrever o que vou dizer. Hesitei muito e muito rezei para não ter de o fazer. Para que alguém o fizesse antes. Mas tenho de fazê-lo, de dizê-lo, porque não é digno nem humano não fazê-lo. Há largos meses que durmo menos uma hora ou duas. É nesse tempo que alinhavo ou preparo as minhas homilias; contudo, o que não consigo fazer é evitar o martelo que, de quarto em quarto de hora, me bate na cabeça como um sino pelo que, em vez de «pam, pam, pam», eu oiço Gaza. Gaza, Gaza, Gaza. Gaza, Gaza, Gaza.
Em Gaza não morrem números, morrem pessoas. Segundo um lado, ou outro lado, segundo uma bandeira ou outra, morrem mais ou morrem menos pessoas. Segundo um lado, desde 27 de outubro de 2023 (vinte dias após o início dos ataques palestinos a Israel) morreram 80.ooo mil palestinos, dos quais vinte mil não tinham forças sequer para atirar uma pedra contra os carros de combate israelitas. Mas se escutarmos o outro lado — e fácil é perceber qual seja ele — morreram ou desapareceram 800.000 pessoas! Para vergonha de todos nós, segundo agências independentes, esta cifra parece ser a mais aproximada, a mais verdadeira, embora seja bem mais difícil de provar.
Inacreditável.
Dir-me-ão os que se dizem defensores da verdade: — Vês como te deixas enganar? Como tomas por verdadeira a notícia de que foram oitocentas mil mortes, e desprezas a que só relata oitenta mil? Mas não, eu não tomo nenhuma cifra por verdadeira ou por mais aproximada. Não tomo. Para mim a morte de Abel às mãos do irmão já foi um exagero, um crime sem nome que jamais deveria ter sucedido. Mas ainda assim, um crime. Saibam: qualquer morte de Abel, de qualquer Abel de qualquer idade ou nação, e em qualquer era, já é um excesso, uma indignidade incompreensível.
Eu que já não sei dormir seis horas seguidas, não sei como suportar isso. Já tentei negar ou afogar os números, mas nem assim funciona ou aniquila as notícias da infâmia. Alguns dizem, inclusive, para ao olharmos para Gaza não falarmos em genocídio, por ser excessivo ou impróprio. Mas eu olho. Não posso não olhar para aquele deserto de casas e sonhos arrasados por bombas – quem é que merece bombas em vez de pão? Quem é que pode ser condenado ao pão ázimo do horror? Não, não posso, não, eu não posso não olhar. Não. Não posso não pensar que o povo que na Segunda Grande Guerra foi impiamente abandonado e votado ao aniquilamento total, é agora ele o autor, ainda que o não queiramos perceber, do aniquilamento de outro povo. Mas como é isso possível? Como é isso admissível? Poderá agora Abel querer matar Caim?
Quem percebe isso? Quem é que hoje tem as mãos suficientemente pequeninas e limpas para pôr flores nas bocas das armas?
Eu que há longos dias ando à cata de palavras e não as acho; eu que, cuidadosamente, ajunto letras e as articulo em carreirinha, umas a seguir às outras, e só sinto que elas se esfumam e me falham, eu já não tenho palavras contra o mal que ali vejo impor-se como um veneno insidioso. Não, eu não consigo jamais dizer ou escrever direito o sangue que me corre do coração como a torneira duma pipa, como se meu coração fora o único alvo das armas, porque nele sofro o impacto de todas as balas, de tantas bombas que há tantos meses ferem e mordem o chão de Gaza.
Eu que com isto sofro o indizível, só pergunto: Senhor, até quando?… Até quando terei de suportar tudo isto, sofrer tudo isto? Porque não apartas do meu olhar, do nosso olhar, tanto ódio, tanto mal? Até quando morrerão os inocentes, enfim, até quando morrerão, durante o sono, tantos que não são inocentes? Até quando hão-de morrer os meninos que já não conseguem brincar, que não aprenderam a brincar, que não conheceram nem as flores bem as abelhas? Até quando…
Até quando terei de rezar, eu que já não sei rezar? Que te direi, eu que já não tenho palavras, que já não acredito nas letras alinhadas, que já não sei tange-las direito? Como, Senhor, como te rezarei salmos nestes dias em que Gaza nos lembra a infâmia, onde os homens são como lobos que se atiram uns aos outros, sendo que os duma parte não têm dentes ou, se os têm, estão quebrados? Como rezar-te, meu Deus, queres dizer-me? Eu que me apetece blasfemar, que me apetece perguntar-te porque continuas calado, porque não fazes ouvir a tua voz ardente, porque não calas as armas que matam inocentes, pergunto-me: porque te calas, meu Deus? Porque deixas que te acusem de insensível quando te matam os filhinhos mais inocentes? Por que te calas, Deus? Até quando nos provarás? Até quando te calarás? Até quando…
Como, Senhor, como ó Deus Bom, hei-de rezar-te nestes dias negros de Gaza? Não sei, juro que não sei. Mas mesmo não sabendo, rezarei. Rezarei na certeza de que cada gesto, por pequenino que pareça, acrescente forças ao dique que se opõe à tormenta. Rezarei para que ele não ceda. Rezarei para que a relva e as flores regressem a Gaza cantando de júbilo e alegria. E com elas deixem de chorar e lamentar-se os passarinhos, as minhocas e os esquilos. Rezarei como um anjo impotente que alarga as asas a fim de procurar suster o vento frio. Fechados ou abertos rezarei com os olhos porque não posso ignorar e não ficar do lado dos que, depois de destruídas as casas, recebem, sem defesa, as balas no peito. Rezarei, porque não estou disponível para ceder a última palavra à infâmia, à morte, à destruição, ao ódio. Rezarei para dizer sim à dignidade e escolher a vida e a esperança e o abraço entre irmãos.
Rezarei, sim, porque Deus gosta dos vergéis, não de destruição dos nossos lares, sejam eles tendas de beduínos ou mansões — acreditando, porém, que ele prefere as tendas…
Antes de as erguer, purificarei as mãos, como quem esparze sementes de esperança e pétalas de confiança. Mesmo que em Gaza já não existam hospitais nem escolas, mesmo que toda a água esteja inquinada, mesmo que pareça impossível que a vida ali sobreviva, rezarei contra o triunfo da morte! E a favor da esperança! A favor do renascer da vida e das mãos sem pedras nem aramas.
Ainda que tu não me respondas, eu rezarei, Senhor.
Mesmo sem mérito, mesmo se exangue, mesmo se banhado em lágrimas secas, mesmo se assustado e se em descrédito, mesmo que não tenha mais para onde olhar, mesmo se sem nenhuma esperança que me esperance, de olhos fitos no ultraje da cruz, rezarei.
Eu seguirei rezando, claro que continuarei a rezar porque o Padre Romanelli, pároco da Sagrada Família, a única paróquia católica de Gaza, podendo, dali não fugiu. Eu seguirei rezando porque o Padre Gabriel Romanelli, mesmo depois de ferido por uma bomba israelita, continua a rezar no meio dos escombros da esperança. Sim, eu continuarei a rezar porque o Padre Romanelli acolheu sob a sua capa de pastor quantas famílias pôde; porque previamente não lhes perguntou se eram cristãos de qual confissão, se eram árabes ou não, se do Hamas ou não. E com elas repartiu o pão, pão para a barriga e pão para a alma e o coração. Repartiu, sim, sem perguntar se rezavam e a qual Deus!
Sim, eu continuarei a rezar porque os que estão no calvário de Gaza também rezam. Porque o frio noite do calvário sopra sobre as velas acesas, mas não as privou de palavra, não lhes tirou a voz, não lhes roubou a fé nem a esperança. Não lhes tirou, não, e eles sabem-no, como nós sabemos, que o Senhor nos ensinou a rezar (e não apenas nos momentos felizes e folgados, também nos tristes, acabrunhados, nos de tormenta, de perseguição e de aniquilamento). Ora se ainda hoje em Gaza se reza, porque haveria eu de deixar de rezar? Se eu como pão três vezes ao dia, e eles não, porque hei-de deixar de rezar no conforto e na paz da minha Igreja do Carmo? Se o Padre Romanelli e os que estão com ele confiam no Senhor que nos ensinou a rezar, porque deixaria eu de rezar? Por isso,
Pai Bom,
tu que és pai de Esaú e de Jacob,
de Caim e de Abel,
dos ismaelitas, dos judeus
e dos cristãos;
tu, Pai Bom,
tu que és o único Deus,
o único pai e única fonte da vida,
escuta-nos e ouve-nos
nesta hora tremenda da história
da tua família.
Tu que és Pai de Jesus, o Filho,
Pai daqueles que O seguiram
e Pai dos que O sentenciaram
e mataram no madeiro;
tu que choraste por Ele
e agora choras e ficas sem palavras
quando em Gaza te morre um filho
ou uma filha,
não importa em que casa,
nem mesmo de que lado do muro;
tu que na tua impotência
choras como nós,
toma-nos nos teus braços,
aconchega-nos ao teu coração,
afasta-nos da cara os cabelos,
beija-nos e diz-nos baixinho
o verbo, o único verbo
que te define e nunca esqueces
e que tens para dizer a qualquer um
dos teus filhos ou filhas,
seja preto ou branco, ou viva
de qual um do lado do muro:
amo-te muito, minha filha!
Amo-te muito, meu filho!uito, meu filho!