Armindo Vaz, OCD

Na interpretação do relato bíblico do dilúvio no livro do Génesis 6-9, dizíamos no mês passado que era mítico e, porque tencionava dar sentido humano e religioso a realidades custosas da vida humana, punha em cena uma transgressão humana, não moral, que nos mitos de origem deveria ser inevitavelmente punida. Ora, aqui a consequente ‘punição’ é o dilúvio. Reduz e redimensiona a excessiva multiplicação da humanidade à face da terra, como no mito de Atraḥasis. Também não equivale a um castigo moral de pecados humanos, até porque Deus declara “exterminar também o gado, os répteis e até as aves do céu” (Gn 6,7), que evidentemente não são sujeitos capazes de responsabilidade e pena moral. Dado o contexto e o género literário mítico do relato, não se pode entender como se a morte fosse a consequência do pecado nem como se Noé fosse salvo pela misericórdia de Deus. Na realidade, o dilúvio é criador: está encenado em função do inteiro processo de criação descrito em Gn 1-11.

Que cria Deus com o dilúvio? Cria e ‘explica’ a condição mortal de todos os seres vivos, especialmente da humanidade, dando-lhe o mais elevado sentido. É por essa razão que a narração atribui a toda a humanidade a causa do dilúvio (“toda a carne tinha um comportamento viciado sobre a terra”: Gn 6,12) e põe Deus a dar morte a “toda a carne”: “Pereceu toda a carne que se move sobre a terra…, bem como toda a humanidade. Tudo o que tinha alento de vida nas narinas… morreu. Assim foram exterminados [a tradução grega do séc. III a.C. entendeu que foi Deus quem exterminou] todos os seres que se encontravam à face da terra, desde os seres humanos até aos animais selvagens” (Gn 7,21-23). Diz o mesmo que a epopeia de Gilgameš: “A humanidade inteira tornou-se de novo argila” (Tabuinha XI, 133 e 173). “O dilúvio varreu/levou (tudo)” – diz a Lista dos reis sumérios. No mito de Atraḥasis é destruída com o dilúvio toda a humanidade, menos a família do protagonista.

A partir do novo rebento que é Noé e com a nova ordem mundial depois do dilúvio, o processo de criação – que, a nível de compilação de Gn 1-11, começa em Gn 1 – avança para nova fase, decisiva, que apronta a humanidade para entrar na história propriamente dita, relatada a partir de Gn 12 com a história de Abraão, descendente do filho de Noé (Gn 11,10-32). Deus poupa miticamente um piedoso resto para avançar, na sucessiva fase do processo de criação, com um fundamento humano que garantisse a estabilidade perene da conhecida ordem do mundo e da humanidade. Noé não é destinado a salvar a humanidade. Tem a função de dar continuidade à criação da humanidade. A cena do sacrifício depois do dilúvio (8,20-22), análogo ao oferecido pelos sobreviventes do dilúvio na epopeia de Gilgameš e no mito de Atrahasis, significa o restabelecimento duradoiro das actuais relações entre Deus e a humanidade, que aceita os próprios limites face a Deus, transcendente: significa o reconhecimento humano de que Deus é Deus e é o Senhor da terra.

A segura duração do mundo até ao presente do narrador e para o futuro ficava celebrada pelo símbolo de uma “aliança perpétua”, o “arco-íris” ou “arco-da-velha [aliança]” (9,8-17), significando que Deus se demarca da hostilidade contra a humanidade. A aliança congraça o orbe terráqueo com o firmamento celeste, une o céu com a terra, mantendo distintos os dois mundos: o humano e o transcendente. O deslumbrante jogo de cores não é só forma estética. É o grande símbolo da perfeita harmonia entre Deus criador (9,10.13) e o universo visto como criado.

O mito do dilúvio põe Deus a penalizar toda a humanidade porque queria ‘justificar’ o carácter penoso da mortalidade humana e a ordem do mundo em que todos morremos. Conta que Deus é o criador da mortalidade humana, mas não o seu produtor e causa imediata. Ela não é moralmente imposta: é miticamente sugerida. Pela linguagem figurada e não pela história factual, o narrador pensava a morte diante de Deus: faz parte da condição humana mortal, não é uma fatalidade devida a um acidente original ou a uma culpa humana. A mentalidade de culpabilização, ainda existente em várias religiões e no cristianismo, não é sinal de uma religião falsa; é indício de religiosidade imatura, que não consegue dar sentido à morte de maneira positiva.

Assim, o dilúvio é mais do que a história duma célebre catástrofe universal para um filme de sucesso: com função fundante, essencial no mito de origem, medita na ordem cósmica e nas suas leis como divinamente estabelecidas para sempre. Se as interpretações tradicionais desta narração turvavam a captação da imagem de Deus, visto como cruel destruidor de toda a humanidade histórica, a interpretação contextualizada descobre Deus como senhor e origem de tudo o que existe.

O mito gerava uma nova sabedoria e evitava o pessimismo. Sugeria que onde há morte há drama. Mas possibilitava uma nova convivência com ela, associando-a a Deus. Sabia, que no jogo de xadrez com a morte ninguém lhe consegue dar xeque-mate; como diria Homero, «a morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança» (Ilíada, IX, 320): é uma potência destruidora dos nós e dos laços vivos. Mesmo assim, enfrentou-a, com o leitor, diante de Deus, procurando desse modo dar-lhe o sentido último, que é Deus.

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