Frei João Costa, OCD

1. Escrevo no dia dos Santos Pastorinhos de Fátima, Francisco e Jacinta, caídos neste mundo por causa de uma pandemia, há pouco mais de cem anos.

Escrevo no início da Quaresma de 2021, de novo enjaulado por uma quarentena, a cujo acúmulo de dias perdi a conta; chamo, por isso, a estes dias, nem uma nem outra, mas Quarentesma. A palavra não existe, claro, mas ajuda-me a dizer que a meu ver iniciamos a Quaresma como um período de feliz purificação, que entroncando num outro — de sucessivas quarentenas — não foi nem querido nem promovido por Deus, mas do qual Ele pode tirar bem do mal para bem de todos os seus filhos e filhas. Para falar verdade, não queria atravessar uma Quarentesma, apenas uma Quaresma; por isso, quando rezo e choro, ou choro e rezo, oro humildemente a Deus pedindo-lhe que na força do seu Espírito nos conceda um raiozinho de luz que nos ilumine a noite escura que atravessamos e de que haveremos de sair.

2. Se bem me lembro nunca passámos uma Quaresma assim! Claro que me recordarão a de 2020, que foi parecida. Sim, foi. Mas quando o tempo é vivido em Deus nunca o tempo volta, inteiramente, ao seu início, não se repete, ainda que pareça muito igual em muitas coisas.

Não, esta Quaresma é mesmo diferente. A outra meteu-nos tanto medo, que, prontamente, nos encafuamos em casa na secreta esperança de que tudo não passasse de um sonho mau. Era mau, sim, mas não era sonho — era real! E o bicho mau não passou como esperançáramos que de nós passasse como num estalar de dedos.

E eis-nos, de novo, em Quaresma, com uma loucura de contágios e quinze mil mortos às costas. Às vezes, no sobressalto das notícias, penso: podia ter sido eu! É que o bicho anda por aí, e ninguém sabe ao certo onde, se numa rua longe da minha, se dentro de casa, na igreja, ou no meu bolso!

Esta Quaresma tem de ser diferente e sê-lo-á, certamente! E não é só pelas cinzas que não foi possível colocar na testa, não. Aliás, não são as cinzas que salvam, mas o Fogo! Não nos bastam camiões delas, antes mais precisamos das chamas que nos animem a produzi-las!

Esta Quaresma começou como tinha de começar, mesmo se sem Carnaval e sem Cinzas!

3. Começou, pois, a Quaresma, esse tempo tão assaz especial! E já que nos apanhou confinados em casa, oxalá a sabedoria do Alto nos unja a fim de alcançarmos dispensar um pouco o Insta e o FB e todas as redes que nos enredam, a fim de permitir que o Fogo nos limpe do tanto que nos sobra, nos estorva e prejudica!

Se é verdade que há um ano não sabíamos viver em casa durante tanto tempo, e de forma tão intensa; se é verdade que fomos aprendendo — e isto é um ganho, sim — a viver tão juntos, intensamente mais juntos que nunca, aceitando até não sair para apanhar ar, não fazer jogging, não ir jantar fora, ao futebol e ao teatro, não sair ao fim de semana, não ir visitar os avós ou os amigos, e se até aceitamos perder férias —; se de repente tudo isso vale tanto como cinza, para salvaguardar a nossa saúde e a alheia, então, vale a pena considerar, embora muito nos custe, que vivíamos de sobrados excessos!

Esta Quaresma iniciada sem a unção das cinzas, vem, pois, dizer-nos do tanto que em nós há que deva reduzir-se a cinzas. (E calma, calma, calma! Sair é bom, passear também, ir de fim de semana, teatro, concertos e tudo o mais é bom sim! Mas se nos fazem viver tão-só à fresca flor da pele, forçando-nos a ignorar que temos uma casa de Fogo dentro de nós, e que em nós existe uma secreta sala para o encontro e o diálogo íntimo com o Senhor, então não são inteiramente bons, não!).

4. Eis, pois, que começaram os dias da renovação, que nos convidam a viver a novidade de Deus em Quaresma. E se não houve cinzas, mas urgência de reduzir muita coisa a cinza, não percamos tempo a bater no peito e a lamentar-nos, que mais importante que bater no peito é reconhecer que precisamos de arranques de alma que nos desafiem e nos ergam, nos revolvam e nos ponham a caminho. Sim, que não somos daqui, do barro, mas barro com aspiração de eternidade e de céu pela força do Fogo.

5.  Das cinzas ao Fogo, tal é o caminho que se nos abre, pois que ninguém vai para a Quaresma para fugir, mas para ser encontrado, não para chorar, mas para rir, porque chamados a descobrir que somos filhas e filhos queridos de Deus, e que é da fonte do seu coração que bebemos a graça, o sonho, a ousadia e a vida!

6. O rumo é este: das cinzas ao Fogo, das lágrimas ao rir, da depressão à festa!

7. Não é este o tempo de andarmos cabisbaixos, mas reguilas e em frente; não é este o tempo de gente triste e bisonha, mas da que chora para rir: choramos os que ultrapassam a fila das vacinas, choramos os nossos pecados para deles alcançarmos o perdão e a comunhão com todos, choramos a indiferença global e a nossa (ninguém ignore que no coração de todos o medo do outro cresceu, que o medo do diferente aumentou, que o egoísmo nos fecha e torna evitantes e defensivos!) que impedem a transformação do nosso mundo num jardim de portas abertas, partilhável por todos, para alcançarmos rir como riem os meninos e os santos, os que a todos sabem ungir e abraçar com o coração, a todos sabem olhar com amor e com tempo para semear sementes de esperança.

8. Nesta Quarentesma direi, pois, a meu pobre coração: abre os olhos, pobre de Deus, e escuta as urgências, os gritos, os medos, as inquietudes e solidões de tanta gente! Abre os olhos, coração, que esta é a Quaresma que Deus quer de ti: que saibas apreciar a vida que desponta, mesmo que para tal em ti tenhas de podar alguns excessos! Animas-te?