Verónica Parente
No mundo atual onde a tecnologia invade cada instante, as férias correm o risco de se tornar apenas prolongamento das obrigações digitais. Vamos de férias com os telemóveis sempre conectados e com os portáteis atrelados a nós, pois temos sempre algo que ficou pendente. E televisão e rádio sempre ligados. Será que o silêncio incomoda? Das informações não nos podemos desconectar? Mas, será que não? — Sim, podemos e devemos desconectar, porque o silêncio e o recolhimento, como ensinam os Carmelitas, oferecem um espaço sagrado para reencontrar a alma, os outros e o mistério que nos habita.
Estava eu em férias quando recebo de um amigo carmelita uma mensagem/link no WhatsApp. Era um link acompanhado duma frase: «Férias: lugares de encontro – Entrevista ao padre Vasco Pinto Magalhães». Abri, vi e refleti. O título ficou a ressoar em mim. Férias como lugar de encontro? O curioso era o meio pelo qual esta provocação me chegava: um telemóvel, em plena altura em que eu procurava precisamente afastar-me dele, do computador e dos livros, para poder descansar o cérebro. Precisava de um tempo para não fazer nada! E como é necessário e urgente esse tempo!
A entrevista com o padre Vasco Pinto Magalhães lembrava que as férias não são apenas um intervalo do trabalho, mas sobretudo uma oportunidade de encontro — com os outros, com a natureza, com Deus e, não menos importante, connosco mesmos. Esta ideia confronta-se com a realidade do nosso tempo: vivemos mergulhados num mar de notificações e mensagens que nos roubam o silêncio necessário para tais encontros. E-mails e mais e-mails, grupos e mais grupos, chamadas e mensagens… publicidades, um sem número de distrações. E o descanso dos ecrãs? Sim, o descanso que deveria abrir espaço à vida mais profunda torna-se facilmente prolongamento das obrigações digitais e da era das teclas….
O quanto temos de aprender e regressar ao essencial com os carmelitas, eles que sempre foram mestres na arte do recolhimento. Santa Teresa de Jesus, no Livro da Vida, insiste que «é necessário afastar-se das distrações» para que a alma se encontre. Da mesma forma, São João da Cruz fala na Subida do Monte Carmelo da importância do desapego: libertarmo-nos das amarras — materiais ou interiores — para alcançar a verdadeira liberdade. Tantos necessários desapegos! Desapegos que hoje podem muito bem significar desligar o telemóvel e o e-mail para redescobrir a serenidade perdida. Mas não são só estes Santos que nos alertam para tal necessidade. Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein) acrescenta outra luz. Para ela, o silêncio e a contemplação não eram fuga do mundo, mas a forma mais radical de se ligar ao essencial. Nas férias, esta intuição pode traduzir-se em reservar momentos para a interioridade, resistindo à tentação de encher cada instante com estímulos digitais. Para mim, o silêncio não é ausência, mas plenitude; assim o aprendi ao longo da minha vida! E como o aprendi! A filosofia contemporânea também alerta para os riscos da dispersão. Albert Borgmann, em Technology and the Character of Contemporary Life (1984) nota como a tecnologia ocupa o espaço do repouso, substituindo a experiência direta pelo consumo constante de estímulos; já Jon Kabat-Zinn (1990) acrescenta que o excesso de conexão digital fragiliza a capacidade de relaxar e apreciar o lazer. Ambos fazem ecoar aquilo que São João da Cruz afirma em A Noite Escura da Alma: «para vir a saborear tudo, não queiras ter gosto em coisa alguma». Concordo com São João da Cruz e atrevo-me a afirmar que a verdadeira liberdade nasce do esvaziamento das distrações. E como em nós ecoa a espiritualidade carmelita quando nos lembra ainda que o encontro connosco mesmos só acontece no recolhimento. Outro exemplo: se lermos Santa Maria Madalena de Pazzi, mística carmelita do século XVI, encontrar-nos-emos com o seguine ensinamento: «a alma precisa mergulhar no silêncio como quem mergulha no oceano de Deus». Esta imagem tão poética serve, hoje, de antídoto à fragmentação digital: aprender a mergulhar no silêncio das férias, em vez de nos perdermos na superfície das redes sociais! David A. Levy, em Mindful Techie, traduz em linguagem contemporânea esta mesma intuição: estar presente é o verdadeiro antídoto contra a dispersão. O gesto simples de desligar-se abre caminho para viver o momento — seja ao vento no rosto, à brisa do mar ou a uma conversa sem pressa. Assim o fiz; nestas férias foi este o meu estar: estive presente! E este estar presente é, sem dúvida, o verdadeiro antídoto contra a dispersão que nos consome (tantas vezes em silêncio, sem nos darmos conta…). No ritmo acelerado do mundo contemporâneo tentei não ser puxada em mil direções: seja pelas notificações que piscam, pelas mensagens que exigem resposta, ou pela urgência de atender informações que se acumulam sem cessar. Sim, no meio deste turbilhão, a atenção fragmenta-se e a vida escapa em pedaços, muitas vezes sem que que o percebamos. É justamente neste contexto que a presença consciente revela a sua força transformadora: ela nos reconecta com o instante, com o corpo, com o mundo e com aquilo que é essencial dentro de nós. Embora simples, o gesto de desligar-me carregou uma potência quase ritual: silenciar o telemóvel, fechar a porta das redes sociais, recusar-me a ser arrastada pelo fluxo incessante de estímulos digitais — tudo isto gerou uma abertura, um espaço onde foi possível, enfim, habitar a própria vida. Nesse espaço, cada sensação se intensificou: o vento que tocou o meu rosto deixou de ser apenas brisa e passou a torna-se presença; o som do mar não foi apenas ruído, mas diálogo profundo entre a natureza e a alma; e uma conversa, antes interrompida pelo telefone ou pela pressa, transformou-se em verdadeiro encontro, onde cada palavra tinha peso, cada silêncio carregava significado e cada olhar encontra a sua verdade. Estar presente é isto! Estar presente é também um ato de coragem, pois exige escolher a experiência direta em vez da distração constante. É recusar a ilusão das multitarefas que nos fragmentam e nos esvaziam, e permitir que mergulhemos na plenitude do agora. Neste mergulho descobrimos nuances da vida que antes passavam despercebidas: a delicadeza da luz filtrando-se pelas folhas, o aroma do mar misturado com a brisa, o ritmo da respiração compartilhada em silêncio. Cada instante, quando vivido com atenção plena revela-se abundante, repleto de sentido e de intimidade com o mundo e consigo mesmo.
No fundo, o presente não é apenas um tempo cronológico; é um espaço místico, uma porta que se abre para a interioridade. E a vida nesta presença deixa de ser uma sucessão de tarefas e preocupações e torna-se experiência viva, diálogo contínuo com o que nos habita e com o que nos rodeia.
Desligarmo-nos, portanto, não é apenas retirar-nos do digital; é permitir que a alma respire, que os sentidos despertem, que a atenção encontre o seu lugar no universo. E é neste gesto aparentemente simples que reside a verdadeira liberdade: a liberdade de sentir, de viver, de existir com profundidade, e de reconhecer, em cada instante, o milagre silencioso da vida que pulsa ao nosso redor; o milagre de estar com os outros, connosco e com Deus.
E é assim que regresso à mensagem recebida. Talvez o Padre Vasco Pinto Magalhães tenha razão: as férias são lugares de encontro. Para lá disso, concordo com o que nos ensinam os Carmelitas: o encontro exige escolhas. Escolher o silêncio em vez do ruído, a presença em vez da dispersão, a contemplação em vez da pressa. Só então as férias deixam de ser uma pausa cronológica e se tornam um tempo de transfiguração, onde nos reencontramos com o essencial. E talvez seja precisamente aí, neste paradoxo — receber via WhatsApp um convite para o silêncio — que se revela a urgência do nosso tempo: redescobrir, como os santos Carmelitas nos recordam, que a verdadeira renovação nasce quando ousamos desconectar. Oxalá possamos (re)aprender com Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz que o verdadeiro encontro connosco mesmos e com o divino ocorre na quietude, longe das distrações. Além disso, reflexões contemporâneas ressaltam que a saturação de estímulos digitais pode fragilizar a nossa capacidade de relaxar e apreciar o momento presente. Ó, como é bom e salutar redescobrir o valor do silêncio e da contemplação nas férias! (Re)descobrir torna-se essencial para uma renovação genuína, permitindo que estes momentos se transformem em verdadeiros encontros com o essencial. Arrisco a dizer que não só em tempo de ferias, mas sempre!
Referências
Borgmann, A. (1984). Technology and the character of contemporary life: A philosophical inquiry. University of Chicago Press.
Kabat-Zinn, J. (1990). Full catastrophe living: Using the wisdom of your body and mind to face stress, pain, and illness. Delacorte.
Levy, D. M. (2016). Mindful tech: How to bring balance to our digital lives. Yale University Press.
Magalhães, V. P. (2023, [mês]). Férias: lugares de encontro [Entrevista]. YouTube. https://youtu.be/wnRTcpXui0I
Stein, E. (Santa Teresa Benedita da Cruz). (2002). Self-portrait in letters: 1916–1942 (J. Koeppel, Trans.). ICS Publications.
Teresa de Jesus, S. (2010). Livro da vida (M. Delgado, Trad.; Edições Carmelo). Paulinas. (Obra original publicada 1565)
João da Cruz, S. (2013). Subida do Monte Carmelo (F. Rodrigues, Trad.; Edições Carmelo). Paulus. (Obra original publicada 1578)
João da Cruz, S. (2014). Noite escura da alma (M. S. L. Coelho, Trad.; Edições Carmelo). Paulus. (Obra original publicada 1585)
Maria Madalena de Pazzi, S. (1996). The complete works (Vols. 1–6). ICS Publications. (Obras originais do século XVI)