Frei João Costa, OCD
1. Acabara eu de iniciar a Missa e sentei-me, como é uso. Pela porta do fundo, a principal, entrava-me o mundo todo inundando-me a alma de ruído surdo: uma ambulância a gemer, o esfomeado esfalfo das motos da Uber Eats, autocarros apressados para a Praça, as escolas e os escritórios, um camião do lixo desorado, táxis stressados, um camião-grua gingão, centenas de carros em ebulição, um camião de abastecimento de supermercado, autocarros, mais autocarros, e mais autocarros, um enxame de trotinetes, um zeloso polícia a apitar, o pessoal a tomar bicas, e dois pedintes a beber cerveja de litro; cada um a sua, entenda-se.
Era pelas oito e picos da manhã.
Eu celebrava Missa, como digo. Os mistérios da salvação estavam todos a acontecer ali, incluindo o mundo que se me cravava a ferros coração adentro.
(Se ouvia a leitura? Não, não ouvia. Mas mais que um refúgio, eu buscava uma clareira, interrogando-me por que minha cabeça insistia em impedir que todo o mundo e o mundo todo viesse à Missa. É certo que eu podia mandar fechar a porta, ou ir fechá-la eu; mas aqueles eram os dias da pedemia e a conveniência era manter os espaços fechados o mais arejados possível. Essa era a razão por a porta seguir escancarada já depois de começada a Missa.)
2. Celebrava eu, pois, a Missa, com o mundo em crescendo, qual invicta maré transbordando, invadindo-me por todas as frinchas e poros, quando um cão entrou na igreja.
– Só cá me faltava um cão!, pensei.
E o cão entrou. Não era feio, não era rafeiro, não se mostrava depressivo ou assustado. Assumiu que subiria pela coxia central e assim fez à vista de todos. À vista de todos subiu por entre um misto de olhares surpresos e reprovadores. Sem, porém, ninguém mexer um dedo para o suster. Ao chegar à entrada do presbitério fez uma espécie de vénia (ou seria uma hesitação?) e subiu. Aprochegou-se-me e eu pensei com a minha estola:
– Temos história; e das lindas! Será ao menos católico?
Nunca temi que me mordesse e não me mordeu. Eu estava sentado e sentado fiquei. Ele não me saudou e eu não retorqui nem o escorracei. Cheirou aqui, cheirou ali, voltou a recheirar aqui. E foi aqui que se recostou, de focinho virado para os meus pés. Em pouco tempo me levantei, porque a cantora entoou o Aleluia; e ele sobressaltou-se. Inclinei-me para o altar para rezar em segredo a oração e rezei. Aí ele achegou-se e cheirou-me os tornozelos e as sandálias. Depois eu dei um passo em frente, e ele ficou-se. Proclamei o Evangelho e, de esguelha, percebi que ele ficara de pé.
– Haja respeito ao menos, concordei!
Preparando o altar, ele afastou-se ligeiramente sem, porém, deixar de concelebrar. À consagração, demorado, genuflecti, e ele, de pé se mantinha; no restante sentou-se. Quando subi para fechar o sacrário, ou porque se assustara, ou por alguma outra intuição, alevantou-se de orelha caída e para ali virado ficou.
Juro que ao dar a bênção a dei também ao cão! Restava-me uma gavela de curiosidades: deitar-se-ia de novo? Faria ali ninho? Seguir-me-ia para a sacristia? Daria por terminada a função? Sairia para a rua por arbítrio próprio, ou teria eu de cometer o pecado de o escorraçar? Estaria com fome? E com fome de quê?
Ao reentrar no presbitério para recolher as alfaias dali se retirava ele como entrara: cabeça baixa, passo certo e firme, cauda confiante e ligeiramente descaída, em descontração. Aí, eu pensei comigo:
– Já te vais e nem o nome te dei. Voltes que não voltes, Fiel ficarás.
E nunca mais o vi.
Juro que cirandei pelo presbitério, pela igreja, pelas capelas, pelo átrio, à procura de sinais de xixi de cão, ou de algo mais substancial. Não achei que, se achara, haveria de rapidamente limpar-se. Mas digo a verdade, já noutras ocasiões achei prendas tais de humanos, e mais que uma vez! E se eles se houveram de alimpar-se foi aos dedos, que guardanapos não vi! Mas desta feita não, como digo.
Acredite quem puder: por todo o santo dia me restou na retina do coração o génio fiel do cão; melhor dito, não sei se génio era ou se apurada sensibilidade; se puro tino, instinto, intuição ou afeição, ou respeito sagrado pelo tanto que os Sagrados Mistérios e a Sagrada Hóstia a mim e à assembleia tanto diziam. Simplesmente, não percebi o que o bicho percebera, ou se algo percebera. Mas que algo de nobre nele havia, isso havia.
Como digo, tenho por vezes recebido melhores lições de animais que de humanos; e olhem que não sou daqueles que vestem os bichos, os sentam à mesa com lugar para prato, guardanapo e talher, os tratam por bebés e os beijam como a filhinhos, não.
3. Sim, agora conta me dou duma estória que por aí se conta: sucedeu a coisa na visita do Papa João Paulo II aos EUA, em 1995; precisamente no último dia da sua visita apostólica. Estando no Seminário de Santa Maria, em Baltimore, o Papa manifestou o desejo de fazer uma visita não programada à capela do Santíssimo Sacramento. Os responsáveis pela segurança logo percorreram todas as dependências do edifício com cães farejadores, daqueles que ajudam a localizar pessoas em desabamentos de prédios e catástrofes naturais, a fim de se certificarem de que não estariam escondidos eventuais indivíduos no local.
Levados à capela, os cães fizeram ali o seu trabalho. Quando achegados ao sacrário, eles pararam e ficaram a olhar fixamente, como quando se detecta uma pessoa entre escombros. De olhos fixos no sacrário, eles cheiravam e latiam recusando-se a sair do local. Para eles, havia ali dentro uma pessoa escondida!
E não é que em cada sacrário há mesmo uma Pessoa escondida!
A tanto não chegou o meu Fiel, ou chegou e, torpe, eu não o apercebi. Que também isso acontece. E já que estamos em tempo de estórias, outra segue:
Conta-se que certo protestante inglês entrou com sua filhinha de 5 anos numa igreja católica de Londres. Ao ver uma luzinha acesa diante do sacrário, a menina perguntou:
– Papá, por que está acesa aquela lâmpada?
Ao que o pai respondeu:
– Porque ali, atrás daquela portinha dourada, mora Jesus!
Então, ela contestou:
– Papá, eu quero ver Jesus!
– Não se pode, filha, porque a portinha está fechada, respondeu o pai solícito.
De seguida, saíram da igreja e mais adiante entraram num oratório protestante. Chegados ali, logo a criança disse:
– Papá, aqui não tem aquela luzinha acesa por quê?
Meio desconcertado, o pai não soube o que responder.
4. É como digo, bichos há que nos envergonham.
5. Eu que cão não sou e menino já fui, permito-me contar, por último, uma estória só minha. Devo ainda dizer que, ao todo, apenas avistei dez países, e não me pelo por visitar mais; quero dizer: se por aqui me ficar no que da vida me resta, não o lamentarei.
Um dia visitei a Suíça. Ia desarmado; isto é, sem expectativas do que ver ou não ver, porque de antemão assumira ser aquele um país burocrático e desengraçado. Enganado eu ia, visto que deixou de o ser depois de certa lição que ali sofri:
Numa manhã visitámos uma série de monumentos, incluindo igrejas. Foi um corre-corre, um lufa-lufa intenso, entrando por uma porta e logo saindo por outra, num trote desenfreado, pois haver-se-ia de cumprir aquele programa cultural, entrar rapidamente no autocarro e ir almoçar cem quilómetros à frente, noutra cidade. Ora sucedeu que antes da última visita – a uma igreja protestante – visitáramos uma católica. Juro que nada recordo da catedral católica, a não ser o luminoso sacrário que me prendeu o olhar e me arrebatou o coração. E juro que nada lembro do templo protestante (que havia séculos fora descatolicizado), a não ser que não tinha sacrário, não tinha referência, estava nu e despido.
Ai, que susto, que desamparo, que abismo de nada ali vivi!
Que ouso eu dizer? Apenas a vertigem do abismo que durante meio segundo a minha alma sentiu. Vi-me perdido! Sem sacrário senti-me barquinho sem leme e sem remos, sem timoneiro, sem rumo, sem vela nem vento, e sem porto para onde apontar! Nunca antes ou depois senti tal desamparo, desassossego ou vertigem; mas a verdade é que nunca antes ou depois volvi a entrar num templo sem sacrário.
Sim, o sacrário tem isso: tem âncora que segura o nosso bote! Tem farol que nos desvela o caminho pelo meio do nevoeiro. Mesmo que fechado, revela uma Presença. Mesmo que silencioso, fala connosco. Mesmo que parado, atrai-nos, puxa-nos e põe-nos em movimento. Ali se amainam as tempestades, param as sedes, se arreda o Inimigo, acalmam-se os corações, saciam-se os amigos, repousam os amantes.
Sim, o sacrário é como os prados da primavera: tem frescura, arroios de água viva, margaridas frágeis, brisa suave, roçagar de asas de anjos, sinfonia da natureza a encantar, o sol a brilhar, o riso doce das abelhas, a ternura dos passarinhos no ninho. O sacrário tem vida, tem alma, tem cura, tem calor, tem um coração a palpitar por nós! Tem amor!
E tem aquela luzinha que atrai, que captura o olhar. Quando tu entras, aquela luzinha chama e prende. Fala contigo e convida-te a aproximares-te, a aqueceres-te e a queimares-te. Seduz e encandila as borboletas, queima e abrasa-lhes as asas até elas caírem exaustas e mortas de amor!
Com vozinha de infindo fio de prata, aquela luzinha nunca desarma, e diz:
– Vem, vem para aqui! Aproxima-te! Prende-te aqui. Fica aqui. Fiquemos juntinhos! Vá, fiquemos juntinhos aqui, sim!
Aquela luzinha é um sinalzinho que até podes não ver, não querer ver, ou nada perceber. Aliás, desde um qualquer lugar do templo, pesada, podes baixar a cabeça. Colocá-la entre as mãos. Segurá-la em desespero. Ou deixá-la repousar. Ou podes adormecer. Mas a luzinha fica ali. Tremeluzindo ali. Interpelando-te dali. Sem berrar. Sem forçar. Dizendo-te, apenas:
– Olá! Estou aqui, vês-me? Olha! Olha, que Ele está aqui! Comigo e contigo, Ele está aqui! Serena e acalma-te, que Ele está aqui!
E mais nada.
E mais nada? Mais nada, não! Quero aqui deixar lavrado e declaradamente declarado que às vezes estou por ali – um bocado distraído, é certo!, mas estou – e vejo cada coisa! Cada coisa eu vejo. Repetidamente eu vejo hordas de turistas assediando o meu lugar de oração e de paz enquanto rezo. – Eu chamo-lhes turistótós, mas isso já é outro assunto –. Marchando, invadem tudo de nariz no ar e arma em punho – A arma é o iphnoe que tudo fotografa e grava. Eu fico passado com aquilo; mas já me vou curando. Entram quatro por aqui, oito pelo meio e mais seis pelo outro lado. Atropelam os bancos, esbarroncam as capelas, apontam o pau de selfie como se fora uma metralhadora, miram tudo, remiram o demais, tiram umas fotos, posam e fazem umas selfies em modo influencer, riem, alombam de novo as mochilas; e abalam. E a esta seguir-se-á em refluxo e a qualquer momento um novo tsunami.
E eu pergunto-me: que viram eles? Que sentiram? Que perceberam? Que descansaram? Que tanto palram e que nada de novo descobrem? Porque nada os toca, os sensibiliza, os interpela ou assusta? Porque não rezam? Porquê?… Que razoabilidade há em tudo fotografar em modo indiferença, tanto a imagem do Senhor da Cana Verde como a estátua de César Augusto, ou o busto do Cristiano Ronaldo, ou o báculo do bispo D. João Peculiar?
5. Não percebo este canibalismo cultural que, com idêntica indiferença, se apropria de igual modo do sagrado e do profano; e que na mesma caderneta cola todos os cromos: fotos de fachadas de templos, imagens sagradas e espaços celebrativos, de ruas, portas e aldrabas, de praças, palácios e mercados, de estádios, avenidas e cangostas antigas, de fontes, pontes e alamedas, de pessoas célebres, instantâneos de gato a dormir ao sol ou de canteiros de jardim!
Juro que não percebo essa mescla sem hierarquia, nem respeito por critério algum!
Juro que me confundem quando me forçam a pacífica porta da igreja como quem entra pela Brasileira, ou ciranda pelo BragaParque, aproveitando o ar condicionado em dias de calor!
Juro que tudo isso me estranha, e que tanto embotamento me dói e me mói!
Juro que às vezes tenho saudades do Fiel que, quem sabe, talvez fosse apenas algum honrado infiel pagão!
Juro que tenho medo que o enregelado frio do inverno que está para vir apague aquela luzinha!
6. Ai, que se a luzinha se apaga, a noite cai!