Armindo Vaz, OCD
Das suas atitudes, palavras, tomadas de posição, homilias diárias e discursos circunstanciais conhecemos bem o pensamento do Papa Francisco. Coerentemente, com variações segundo as circunstâncias, incide no valor inegociável do ser humano e da sua dignidade. No discurso ao Parlamento Europeu (25.11.2014) sintetizou o que leva no coração: “Quero afirmar a centralidade da pessoa humana… pôr no centro [de tudo] a pessoa humana”. Um pouco antes já tinha declarado: “Afirmar a dignidade da pessoa significa reconhecer a preciosidade da vida humana, que… não pode ser objecto de troca ou de venda… Paralelamente a uma ecologia ambiental, é necessária a ecologia humana, feita do respeito pela pessoa”. A construção da sociedade “gira, não à volta da economia, mas à volta da sacralidade da pessoa humana”. O primado da vida acentuado por Francisco passou até para o filme Dois Papas.
A partir do dia 16 de Dezembro de 2019 ficámos a saber também que Francisco tinha pedido à Comissão Bíblica Pontifícia que redigisse um Documento a reflectir sobre o que a Bíblia diz a respeito do ser humano. Os «biblistas do Papa» tornaram público (na Libreria Editrice Vaticana) o Documento com o título “O que é o Homem? Um itinerário de antropologia bíblica”. A partir de temas presentes nos capítulos 2-3 do livro do Génesis (história do casal primordial), vão lançando pontes para inúmeras afirmações da fé bíblica, que compõem uma visão global, diversificada, do ser e agir humano.
Em Itália, os meios de comunicação social publicitaram largamente os temas «problemáticos e transgressivos» da Bíblia explicados no Documento: a poligamia, os matrimónios ‘mistos’, o divórcio, o incesto, o adultério, a prostituição, a homossexualidade… Realmente estas são questões antropológicas incontornáveis. Mas o alcance do livro ultrapassa a curiosidade incendiada por elas. Como tinha de ser, espraia-se pelos grandes temas constitutivos da essência do ser e viver humano: ser para a transcedência e para Deus, ser para os outros e com os outros, ser com conhecimento e sabedoria, ser para o trabalho, ser limitado, finito e mortal, ser de esperança, ser para a vida definitiva que não pode acabar, ser para o amor e para a beleza no matrimónio ou fora dele, ser para a festa e para a felicidade, ser para a bondade e para a lealdade, ser que é tentado e que peca, ser chamado à santidade e à salvação pelo Homem Novo, Jesus de Nazaré… Coloca no horizonte do leitor o projecto de salvação do ser humano por parte de Deus…, plano salvador que a fé bíblica foi descobrindo pouco a pouco no longo diálogo de Deus sempre fiel com um povo claudicante entre a fé e o pecado…, plano salvador que foi plenamente revelado e perfeitamente realizado por Jesus, aparecido como filho do homem e Filho de Deus, que é “a chave, o centro e o fim de toda a história humana”, aquele em cujo mistério “encontra luz o mistério do ser humano” (Conc Vat II, Gaudium et spes, § 10 e 22).
Mais uma vez, portanto, o Papa Francisco trouxe para a ribalta uma realidade fundamental no cristianismo: atender à centralidade absoluta do ser humano. Na realidade, essa é precisamente a centralidade luminosamente focada pela Bíblia. Se podem pensar que ela fala de Deus, fala outro tanto do ser humano. Não fala de Deus em si, nem do homem em si. Fala de Deus em relação com o ser humano e do ser humano enquanto relacionado com Deus. Vê o Homem a partir de Deus e contempla Deus a partir do Homem; por outras palavras, concebeu o ser humano a partir da sua contemplação de Deus e foi tomando consciência de Deus a partir de uma visão elevada do ser humano. Mesmo quando fala de Deus, quer ‘explicar’ o ser humano a si próprio e dar sentido último à sua vida. O que o povo de Deus pensa do ser humano só se pode entender a partir da sua fé em Deus. O homem bíblico não teria fisionomia separado de Deus.
Sendo a Bíblia, para a fé judaica e cristã, palavra de Deus inspirada, é ao mesmo tempo um dos maiores produtos da cultura e da inteligência humanas. Inspirada, não é um meteorito caído do céu: recolhe as respostas dos humanos ao diálogo que Deus iniciou com eles, com a mediação da fé deles. Emana uma atmosfera sã de humanidade. As suas grandes narrativas e os seus mais variados textos reconduzem-nos sempre às suas características bem humanas e dão voz aos sentimentos humanos universais: aos anseios, desejos e necessidades, à introspecção e à intuição da consciência, aos eternos e decisivos problemas do mundo humano. As suas páginas mais belas tornam-se pro-vocação e desafio radical à mudança de vida para melhor. Os problemas que de vez em quando despontam nas relações humanas, em pequena ou grande escala (racismo, xenofobia, eutanásia, exploração laboral, injustiças, violência, divórcios, inquinamento do ambiente…) devem-se, de uma maneira ou outra, à falta de espiritualidade e de princípios antropológicos (que estão na Bíblia).