Armindo Vaz, OCD

A quadra do Natal de Jesus, com o Advento que lhe está associado, suscitou ao longo dos séculos cristãos elevadas reacções do génio humano: fez arte sublime, no teatro, no cinema, na pintura e na escultura, com as mais variadas representações; fez poesia, literatura, linguagem; fez conto e fez canto; fez cultura e espiritualidade. Mas também fez teologia, procurando tornar razoável a fé no mistério de Deus, com a ajuda da razão. Meditemos a sua relação com o Nascimento de Jesus.

O tempo litúrgico que o celebra proclama mais de uma vez as palavras do portentoso pórtico do evangelho de João: “No princípio existia a Palavra. E a Palavra estava a apontar para Deus [tinha a ver com Deus, estava em relação com Deus]. E a Palavra era Deus. Ela estava no princípio junto de Deus”. Palavra traduz aqui o original grego Lógos, que também se pode entender como Razão: razão de ser e fundamento de todos os seres, que preside à vida do universo e em relação à qual todas as coisas acontecem. Dar ao Filho eterno de Deus este qualificativo sugere que ele é quem dá razão à história humana e que é nele, incarnado em Jesus Homem perfeito, que todo o ser humano encontra a razão de ser, a máxima expressão, o mais excelso estatuto e o mais subido ponto de referência. Que “estava a apontar para Deus” pode entender-se que tinha a ver com Deus: tinha uma existência relativa a Deus, estava relacionada com Deus, como Filho com Pai. Com esta ligação de Deus a Jesus como sua Palavra, João revelou-nos o melhor de ambos, dizendo que o Filho é a comunicação do Pai: “a Deus jamais alguém o viu. O Deus único gerado, que está em íntima comunhão com o Pai, ele é que o explicou [o deu a conhecer, o interpretou, o narrou]”, com a sua vida e com a palavra deste evangelho. Jesus é o rosto visível do Deus invisível.

Chamar Palavra ao Filho de Deus é contemplar o próprio Deus a querer dar-se, a querer falar, a querer ‘dizer-se’. É o Mistério a querer comunicar-se aos humanos. A Palavra conota e realiza o Projecto salvífico de Deus para a humanidade, aquele Projecto que, ao longo da história do povo de Deus, os profetas foram dando a conhecer (falando em nome d’Ele) e que agora tomou forma humana na pessoa de Jesus. Certas formas, ainda imperfeitas, de compreender o ser humano ficaram superadas quando o verdadeiro Projecto de Deus para o ser humano apareceu na pessoa de Jesus. Os leitores do evangelho de João puderam de facto contemplá-lo na sua vinda histórica, porque “a Palavra fez-se carne e acampou entre nós” [à letra: “…armou a sua tenda em nós, no meio de nós”], sugerindo que, enquanto na experiência libertadora de Israel – no êxodo da escravidão do Egipto – a tenda no deserto era símbolo da presença de Deus no meio do seu povo, agora é Jesus que dá a Deus Presença [Shekinah, em aramaico] “em nós”. O Projecto divino de humanidade e para a humanidade realizou-se na existência humana e culminou na plenitude da Vida, que brilhou no Homem. A Presença activa de Deus não está ligada a um lugar material, nem a sua morada é um recinto sagrado. Não. Resplandeceu no Homem por excelência, Jesus. “E nós contemplámos a sua glória…”, a sua riqueza, o resplendor da sua Presença, o seu ser pessoal projectado para o exterior e desvelado.

A fé cristã que vê Deus no Homem desencadeia uma cultura original: proporciona uma superior compreensão do ser humano e da sua dignidade. É o fundamento da antropologia cristã. “Só no mistério da Palavra incarnada se esclarece verdadeiramente o mistério do homem” (Lumen Gentium, 22). Só em Jesus se capta toda a grandeza do homem: ele dá-lhe a maior estatura.

O Natal é a revolução do cristianismo na paisagem das religiões. A inovação está na revelação de um «Deus para nós», um «Deus por nós» e mesmo um «Deus em nós», já que Jesus é da mesma raça e natureza humana que nós. Nele e por ele, todos nos consideramos irmãos. Se o Natal não é o nascimento de Deus, é sim o nascimento de uma nova imagem de Deus: o Deus da pessoa (“o Deus de Abraão”) e com a pessoa, o Deus para a pessoa, revelou-se finalmente como Deus na pessoa, de Jesus; o Deus connosco revelou-se como Deus em nós.

E, com Jesus, desapareceu a distância entre Deus e homem. Deus veio ao mundo, apareceu em Jesus. Para encontrá-lo, só é preciso conhecer e encontrar Jesus, pela fé. A experiência bíblica de Deus, que proíbe qualquer imagem material d’Ele, defende que Deus pode ser conhecido e reconhecido de forma única em Jesus, “imagem do Deus invisível” (Cl 1,15), “imagem fiel do seu ser” (Heb 1,3). “Quem acredita em mim não acredita em mim mas naquele que me enviou; quem me vê a mim vê Aquele que me enviou…” (Jo 12,44-45; 13,20); “Eu estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14,10); “quem me vê vê o Pai” (Jo 14,9). João sugere: a partir da incarnação de Deus em Jesus reaprendemos o que se pode saber sobre Deus.

Assim entendido, o Natal de Jesus tem sérias consequências: Deus, ‘nascendo’ entre nós, apostou tudo a benefício dos humanos. A resposta humana a Deus passa pelo amor ao ser humano, amado por Deus. A avaliação da vida é feita só numa matéria: seremos julgados no amor. Amando daremos sentido definitivo à nossa existência: terá valido a pena ter vivido!