Armindo Vaz, OCD

A festa do dia 25 de Abril de 1974, entre as várias manifestações de vida e explosões de alegria pelas ruas e praças, celebrava sobretudo a liberdade. Abril ia florescendo entre cantos de júbilo e avenidas de liberdade. Mas logo se percebeu no desenrolar dos acontecimentos que os oportunistas de turno, ao verem o dom precioso da liberdade a cair no regaço do povo, o quiseram agarrar para o entregarem a outra ditadura, pior que a anterior – coisa que veio a acontecer, por exemplo, na Nicarágua. Valeu a força do povo, a perspicácia de alguns dirigentes e a coragem de militares, a impedirem que a revolução feita para obter a liberdade descambasse numa tirania. Sobrepôs-se a arma da palavra, a palavra das manifestações, a palavra dos protestos, a palavra dos discursos e comícios, a palavra dos esclarecimentos, que não queria deixar fugir a liberdade. Uma das dimensões mais acarinhadas, como irrenunciável, era a liberdade de se exprimir, usando a palavra, como queria o poeta Blas de Otero (1955), lutador pela democracia e liberdade em Espanha: apesar de perdas e sofrimentos, de desperdícios e decepções, «me queda la palabra». A apreciada liberdade de expressão, porém, não podia gozar de absolutismo: podia ir até ao ponto em que ainda não ferisse o visado pela expressão. Ao começar a feri-lo, estava a mexer num enxame de sentimentos misturados, em que não tinha o direito de mexer: ao insultares a esposa querida do seu marido, estarias a gerar nele o compreensível ódio – com ‘direito ao contraditório’ de olho por olho!? – e a contribuir para uma sociedade de cegos, em vez de para a fraternidade.

Estava claro que a liberdade tinha dado trabalho, mas continuaria a dá-lo. Quanto mais os livres aperfeiçoaram a liberdade mais cresceu à volta a ambição de lhes arrebatar esse dom, tão desejado como sujeito à deturpação. Então o povo gritou palavras fortes onde faltavam ideias sinceras e abundavam ambições ditatoriais. Sentiu dever atender a Johann Goethe, o escritor e filósofo († 1832) que aconselhava: «Aquilo que herdaste dos teus pais conquista-o para o tornares teu». A liberdade é tanto destino como origem. Só tem futuro se respeitares o seu passado e valorizares o seu preço.

Conscientes disso, somos convocados a pensar nas origens e nos fundamentos espirituais da liberdade, seu suporte consolidado, mesmo assim a ser constantemente vigiado. A liberdade é o valor que mais intensamente identifica a pessoa humana, individual ou colectivamente, em relação a outros seres: é o que faz do ser humano aquilo que ele é e deve ser. Quem não é livre tem em suspenso a sua categoria de pessoa. Até poderia escrever-se a história humana e a história de Portugal nesta perspectiva, procurando descobrir em que medida ela se moveu e se promoveu ou não a liberdade humana. O mundo grego e, depois, o romano sentiram bem o valor da liberdade, mas de forma reduzida, sem a ‘democratizarem’ a todos os humanos: era vista, por exemplo, como liberdade do grego ou do homem livre, em contraposição com o bárbaro, o estrangeiro ou o escravo. O povo bíblico, porque nasceu de uma situação de opressão (no Egipto), saboreou mais intensamente a necessidade e o gosto da liberdade, que então não aparecia simplesmente como um bem, mas como o bem sem alternativas reais, como construção de Deus sobre os escombros de um povo oprimido, impotente para se salvar por si só: onde ele estivesse, seria precisa a liberdade. Mas esta espiritualidade bíblica evoluiu, da aplicação ao povo de Israel para a extensão a todos os povos. Teve o seu ponto culminante e pleno desenvolvimento na mensagem de Jesus, que se entregou livremente à morte para libertar o ser humano da raiz de todas as escravidões, o mal que ofende Deus na medida em que ofende a dignidade humana: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos libertará… Se o Filho vos libertar, sereis realmente livres” (Jo 8,31-32). Jesus universalizou e radicalizou a necessidade da liberdade para todas as pessoas, seja qual for a sua condição social, raça, religião, cor da pele, nacionalidade ou género: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há varão nem mulher, pois todos vós sois um só [radicalmente iguais] em Cristo Jesus” (Gl 3,28).

Enquanto uma opinião largamente difundida pensa que a experiência cristã suporia renúncia à liberdade, de pensamento, de expressão, de escolhas, de acção, estamos a ver que é no cristianismo que ela tem mais condições para florir; é no cristianismo que ela aparece como essência viva da alma e profundeza da existência humana: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). Isso não quer dizer que ela não implique renúncias e escolhas, pois, senão, pode ser real vítima de ambições desmedidas e destemperadas. Quem segue Jesus não só é uma pessoa livre: é um libertado (de todo o mal e de toda a culpa), para escolher e fazer o que Deus quer (tudo o que é bom). Aqui estão as raízes e a fonte da liberdade, irrenunciáveis para o cristão. A cultura ocidental com os valores e os pontos de referência constituídos pela tríade «liberdade, igualdade, fraternidade» – que vem do evangelho de Jesus – não se compreende fora do horizonte aberto por esta mensagem bíblica.