Armindo Vaz, OCD

Temos enaltecido a força da Palavra. Agora é preciso acrescentar: uma vez que a Palavra viva de Deus assumiu corpo na história e foi entregue ao tempo na Escritura poderosa…; uma vez que a Palavra entrou no tempo humano e incarnou numa história humana, exige ser interpretada. A sua força não reside em palavras soltas, desligadas umas de outras: está no contexto que geram dentro de uma narrativa com conteúdo, gerado também ele pela articulação das palavras num todo que faz sentido, segundo as convenções literárias da época em que vivia o autor bíblico (desde o séc. X a.C. até ao princípio do séc. II d.C.). A narrativa bíblica faz sentido ao elevar a vida humana para a transcendência, para a bondade, para o belo sem limites. Numa narração figurativa, aquilo que o seu autor quis dizer através daquilo que disse/contou não resulta de cada palavra (por exemplo, «estejam os vossos rins cingidos», Lc 12,35-38) mas do sentido metafórico delas: ‘tende uma atitude de disponibilidade e de vigilância’, semelhante à dos servos “que esperam o seu senhor no regresso da boda, para lhe abrirem a porta quando chegar e bater”.

O sentido bíblico de uma narração não implica necessariamente que os factos narrados tenham sucedido à letra, pois estão interpretados pela fé: o autor quis transmitir o sentido dos factos mais do que os seus pormenores, recorrendo amiúde a palavras de carga imaginativa ou imagética, simbólica. O sentido do narrado é uma visão espiritual dos factos, que supera a história e quer dar sentido à história dos sucessivos leitores. Esta visão da fé não falsifica o facto histórico: projecta luz num certo aspecto dele, que é a sua dimensão transcendente, e fecunda a vida das pessoas que a ele se queiram ligar.

Repassando um texto, percebemos melhor a função impressiva e performativa da palavra (que realiza o que significa). A narrativa da crucifixão e morte de Jesus (Mt 27,32-54) foi um acontecimento histórico e contém elementos objectivos. Isso, porém, não significa que se passou tal como está contado. Vários pormenores enfrentam dificuldades para ser considerados factuais e sugerem que não sucederam à letra: as contradições da hora a que aconteceu e o lugar certo onde aconteceu a crucifixão de Jesus segundo os diversos evangelistas, o papel preciso das instituições judaicas (Sinédrio, sumos-sacerdotes…), o eclipse do sol sobre toda a terra durante três horas, a cortina do templo a rasgar-se, o terramoto, as pedras a racharem-se, os sepulcros a abrirem-se… Não é a palavra da historiografia. É palavra de género apocalíptico, simbólica, que aponta para a relação desse facto com o mundo divino e visa sublinhar a carga salvífica daquela morte, aceite por amor aos que a quisessem contemplar em vez de só a considerarem como facto histórico entre outras crucifixões que aconteciam e que também são relatadas…; morte aceite como manifestação suprema do amor do Pai aos filhos e do Filho aos irmãos.

A narrativa evangélica, dando ao facto histórico um tom espiritual por meio da fé, não desfigurava a história: transfigurava-a, fixava a irrenunciável dimensão religiosa do facto, fazendo incidir o foco principal no interesse que ele tinha para a sociedade que se quisesse deixar impressionar e ‘banhar’ por ele. A historiografia equipararia a crucifixão de Jesus à de outros condenados que sofreram morte obscena e ignominiosa. A narração evangélica conta-a do ponto de vista de Deus e de Jesus, como um «acontecimento de Deus», não no sentido de que Deus o quisesse, mas no sentido de que o crime perpetrado pelos humanos foi atendido por Deus na sua própria perspectiva, que também era a de Jesus: a de um acto de amor aos humanos. A perspectiva da fé que é a da narração abre o leitor à contemplação dessa crucifixão e a deixar-se salvar por ela. Enquanto a sua visão profana reage com escárnio para com o condenado, como a soldadesca romana, a sua visão Espiritual leva a reagir como “o centurião e os que com ele estavam a guardar Jesus: verdadeiramente, este era filho de Deus” (Mt 27,54). A palavra historiográfica fixa o sucedido num momento do passado; a história sagrada narrada pela palavra simbólica da fé dá-lhe carácter de sentido perpétuo, estendendo a sua eficácia ao presente do leitor. A historiografia relataria a violência de um assassinato na cruz (como pretendem alguns filmes sobre A paixão de Cristo). Os evangelhos preocupam-se com a inocência de Jesus: “pelo contrário, este não fez nada de mau” (Lc 23,41). Sublinham que o cristianismo nasceu de um acto de violência contra um ser humano (“Filho do homem”) para sugerir que dali em diante já não deveria haver mais violência humana. Portanto, o que tem maior impacto existencial e dá poder salvífico ao acontecimento histórico da crucifixão de Jesus não seria um relato historiográfico objectivo e neutral, mas a narrativa da fé, que com a palavra conotativa e re-presentativa mostra presente e activo o amor de Deus entre os humanos. É por isso que a recitação (por exemplo, na sexta-feira santa) do «acontecido de uma vez para sempre» torna sempre actual a sua força redentora para os que o celebram na liturgia.