Armindo Vaz, OCD

O Natal que se aproxima no turbilhão de uma pandemia celebra o dia glorioso em que se entregou ao tempo e entrou na história humana o Filho de Deus. A fé do evangelista João identifica-o com a Palavra, pensando Deus como o Mistério que quer comunicar e ‘dizer’ o seu Ser aos humanos: “No princípio era a Palavra e a Palavra estava junto de Deus e a Palavra era Deus… E a Palavra fez-se carne e armou a sua tenda entre nós” (Jo 1,1.14). Fez-se carne em Jesus, que lhe deu corpo sem a limitar, a carne que na antropologia bíblica é a dimensão vulnerável, frágil, transitória, do ser humano: a carne que sente frio e calor, fome, sede e cansaço; a carne que tem desejos e tentações; a carne que chora e sangra; a carne que é acariciada, beijada e “envolta em panos”. O Natal celebra essencialmente o início histórico dessa Incarnação da Palavra eterna de Deus na transitoriedade do humano – Incarnação que abrange toda a vida terrena de Jesus. Celebra a vinda do Filho de Deus aos filhos dos homens: em Jesus e por Jesus, o Deus eterno (que no povo de Israel já se tinha revelado como «Deus connosco») nasceu como «Deus em nós», assumiu a condição de Homem, os nossos afectos, a nossa fraqueza, como qualquer filho de mulher. Revelando assim plenamente a sua imagem, penetrou no espaço e no tempo, trazendo o divino ao humano. Nasceu em nós para dar o mais alto sentido à fragilidade humana – agora assolada até por uma pandemia – e para que cada um seja salvo na medida em que toma consciência da entrada de Deus na sua vida, lhe dá as boas-vindas e se deixa salvar por Ele.

Esse pode ser o milagre do Natal – «milagre» visto pela fé como intervenção grandiosa de Deus a favor dos humanos: “a Palavra era a luz verdadeira que, vindo a este mundo, ilumina todo o homem…; a todos quantos a receberam [à Palavra] deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus”. Os que acreditam no Filho tornam-se filhos. O oposto a este milagre é o drama: “veio aos seus e os seus não a acolheram” (Jo 1,9.12 e 11). Lucas di-lo com outra palavra: “Maria deu à luz o seu filho primogénito… e reclinou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria” (2,7). Assim, o Natal passou-se e passa-se entre o milagre dos que aceitam Jesus e o drama dos que não o querem hospedar: “a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz…; quem acredita no Filho tem a vida definitiva; mas quem resiste ao Filho não verá a vida” (Jo 3,19.36). Entre o milagre e o drama, as alternativas (frieza, indiferença, fazer de conta que não me diz respeito) não satisfazem. E as consequências para os que desencadeiam o drama são pouco lisonjeiras: ao não darem lugar na sua fé, nos pensamentos, na agenda e nas palavras a Jesus, fecham-se aos benefícios do imenso potencial do seu amor. De facto, foi pelo amor que ele pautou a vida: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13,1). Nasceu do amor, morreu por amor. Com este enquadramento da vida, sugeria que o amor é a experiência-limite que salva a existência humana, sendo o resto mera decoração.

Foi logo pelo Amor – pelo seu Espírito – que Deus Pai fez de Jesus seu Filho e por Jesus entrou na paisagem humana: “Maria, o Espírito Santo virá sobre ti…; por isso, aquele que é concebido santo será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35). As palavras do Natal de Jesus nos evangelhos transparecem experiências de intimidade e interioridade, de bondade e doçura, de novidade e esperança: inspiram afecto. Vozes angélicas cantam loas e convidam à alegria. Uma estrela orienta os pagãos até Jesus. A saudação de Isabel a Maria que visita a família, anunciações celestes – a Palavra de Deus simbolizada num enviado – a Maria, a José, ao pai de João e aos pastores pintam o céu a descer à terra, a transcendência a entrar na imanência. Mas o tom que paira de leve sobre as cenas do seu venturoso nascimento e sobre as respectivas personagens é o do amor de Deus. Elas escutam o inefável, experimentam o divino, descobrem um mundo não mágico mas super-real, escondido aos distraídos actores do drama. O Natal de Jesus (e toda a sua vida terrena) revela definitivamente o amor de Deus na história humana. Não nos vem tirar nada nem exigir o impossível. Traz paz. Pede amor possível.

Francisco pede a «cultura do encontro» (Fratelli tutti, 30). Ora, bom lugar de encontro no Natal é o presépio. Lá, crentes e não crentes, nobres e pobres, reis e pastores, pais e filhos, ficam todos encantados, no sentimento comum da ternura. Mas não se concebe o presépio e o Natal sem Jesus. Os presentes de Natal não podem encobrir a manjedoura de rendinhas, envoltórios, embrulhos coloridos, laçarotes, vistosos adornos, fantasias e lâmpadas de néon, a taparem o Nascido celebrado. Dariam o secundário. Trairiam o coração do Natal, tornando-o palavra gasta ou comercial. Os bons presentes de Natal dão também Jesus, que desperta em nós o humano, numa lógica de conversão que estreita o humano com o divino.