Armindo Vaz, OCD
Desculpa-nos, Samaritana! Como aconteceu com Maria Madalena, também tu foste na história objecto de mal-entendidos: os leitores do evangelho adulteraram a tua imagem, numa montagem distorcida do diálogo que Jesus entabulou contigo. Num toque de poesia admirável, fizeram de ti uma “plebeia” arrebatada de amores por Jesus, perdida por ele em beijos furtivos e ardentes, que te encantaram no encontro a sós com ele, numa tarde escaldante, à hora de incêndios e de sedes: “empalideceste e Jesus Cristo corou”, “morto de sede”, ele “que um dia de amor palpitou”. O fado que cantava “uma lenda encantada” juntava-se à interpretação literal do evangelho de João, capítulo 4. Um dos encontros mais emocionantes da vida terrena de Jesus foi sendo transformado na conversa sobre os teus supostos cinco maridos. Daí a seres vista como vadia e adúltera foi um passo. Deixa-nos cá agora procurar entender as palavras da passagem no seu contexto bíblico, que geralmente não é tido em conta para falar de ti.
“Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me dessa água, para eu não ter mais sede nem ter de vir cá tirá-la. Respondeu-lhe Jesus: Vai chamar o teu marido e volta aqui. A mulher retorquiu-lhe: Não tenho marido. Disse-lhe Jesus: Disseste bem «não tenho marido», pois maridos, tiveste cinco, e o que tens agora não é teu marido; nisso falaste verdade”. Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que tu és profeta. Os nossos pais adoraram [prestaram culto] neste monte. Vós [judeus], porém, dizeis que o lugar onde se deve adorar é em Jerusalém”.
Ora, a transição do tema anterior, em que se falava de água e do Espírito, para o dos maridos da mulher seria incompreensível no plano literal de cinco homens maridos, não tendo sido ela, essa desconhecida, a levar para aí a conversa. Que interesse teria e que sentido faria o pedido de Jesus «vai chamar o teu marido e volta aqui»? Não parece que Jesus quisesse mostrar-lhe a sua capacidade de adivinhação ou dar-lhe uma lição de moral. Se, pelo contrário, o diálogo for entendido no contexto dos profetas, especialmente de Oseias, então cobra sentido. O livro 2Reis 17,24-41 conta a origem dos samaritanos e da sua idolatria. No ano 722 a.C. a região da Samaria, conquistada pela expansionista Assíria, foi povoada de colonos assírios a partir de cinco povos/regiões: estabeleceram-se nas cidades da gente mais selecta da Samaria/Israel, que tinha sido deportada para a Assíria. Com o passar do tempo, os colonos fundiram-se com a população hebraica que lá tinha ficado, resultando daí uma raça mista que também misturou as crenças religiosas. “Cada povo foi fazendo para si o seu próprio deus; …pôs o seu deus no santuário dos lugares altos, anteriormente construídos pelos samaritanos”. E mencionam-se os cinco santuários onde os cinco povos que vieram ocupar a Samaria prestavam culto aos seus respectivos deuses oferecendo-lhes sacrifícios. Além disso, prestavam culto ao Deus de Israel.
Assim cobra sentido que Jesus tivesse avançado para o tema dos maridos. Tinha pedido à samaritana: “Dá-me de beber”. Agora mostra-lhe em que consiste a sua verdadeira sede: “Vai chamar o teu marido e volta aqui”. Na lógica da narrativa o marido tem conotação religiosa (recorde-se que a palavra hebraica baal significa marido e senhor, mas também o ídolo cananeu Baal). O marido representa aqui um deus sem transcendência, numa crença oposta ao amor que Deus manifestava a Israel. De facto, a Samaria tinha atraiçoado o Esposo do povo, procurando soluções enganosas com outros deuses: “Não te alegres, Israel…, como os outros povos, porque te prostituíste abandonando o teu Deus” (Oseias 9,1). “Ela [a esposa, Israel]… dirá: Vou voltar para junto do meu primeiro marido, porque eu era então mais feliz do que agora” (Oseias 2,8-9). Jesus prepara a samaritana para ela fazer acontecer a intuição de Oseias que pôs Deus a dizer: “Naquele dia chamar-me-ás meu Esposo; já não me chamarás «meu ídolo Baal»” (2,18).
Nesta compreensão simbólica do relato, quando João conta que “a mulher respondeu «não tenho marido»” significa que ela não tinha fé em nenhum deus. Os samaritanos pretendiam dar culto ao Deus dos judeus, mas efectivamente tinham quebrado as relações com Ele: “Romperam a minha aliança rebelando-se contra a minha lei” (Oseias 8,1); isto explica a declaração de Jesus: “o que tens agora não é teu marido”. Deus, porém, não cortou relações com eles: “Curarei a sua infidelidade e amá-los-ei de novo de livre vontade” (Oseias 2,16 e 14,5). Agora, neste diálogo com a mulher representante dos samaritanos, Deus oferece-lhes o seu dom na pessoa de Jesus: “se conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que te pede de beber…” (4,10). Jesus personifica a procura dos samaritanos por parte de Deus (por isso, João diz que Jesus “tinha de passar pela Samaria”: 4,4). Ofereceu-lhe o seu amor/Espírito, que foi aceite. Com isso, realizava-se o que Oseias tinha posto na boca de Deus: “Casar-me-ei contigo para sempre, casar-me-ei contigo ao preço de justiça e de direito, de afecto e de carinho” (2,21).
Assim compreende-se que Jesus tenha dito: “tiveste cinco maridos”. Referia-se aos cinco deuses a quem os samaritanos no seu conjunto tinham prestado culto. Parece ser esta a linha de entendimento que também a samaritana teve, pois, respondendo a Jesus, dá seguimento aos temas do profetismo, do culto a Deus e dos templos: “Senhor, vejo que tu és profeta. Os nossos pais adoraram neste monte [Garizim]. Vós, porém, dizeis que o lugar onde se deve adorar é em Jerusalém”. E de seguida Jesus usa o verbo adorar dez vezes em cinco versículos. Parece que ela desejava saber qual o culto verdadeiro, esperando do profeta a resolução do diferendo. Mas Jesus propôs-lhe uma mudança radical: o ‘lugar’ do culto a Deus é o próprio Jesus, mediador na comunicação com Deus e de quem brota a água viva do seu Espírito.
Com esta linguagem simbólica, profética, Jesus reavivava em ti, Samaritana, sedes de água viva, procuras de transcendência, mistérios de fé esquecidos. Não suspeitava de imoralidade. Reorientava-te dos deuses para o Deus vivo. Os teus antepassados idolatravam vários amores. Agora, junto ao poço, lugar de namoros e de encontros que decidem uma vida, encontraste sedenta o Esposo que te procurava a ti e que educou a tua sede para encontrares a fonte da vida. Ao fim do encontro estavas bem orientada, vendo em Jesus o Ungido de Deus (vv. 25-29). Realmente, o teu fado era o de um encontro de amor entre ti e o Redentor. “Que bem fizeste em vir à fonte!” Sim, “Jesus sofreu de amor” por ti; e quis o teu amor, mas maior do que o imaginado por nós. Perdoa, “mulher”, termos desfigurado a tua pura imagem de procuradora do divino, em vez de te imitarmos.